Com a verdadeira história do Circo Místico pouco se tem ocupado a imprensa...
Paulo Rocco
Só agora vi “O Grande Circo Místico” em sua versão cinematográfica. E se não tivesse visto, poderia ter ficado apenas com minhas expectativas de assistir na tela a uma obra que amo (o disco do Chico e do Edu Lobo), com um elenco maravilhoso e um diretor cuja obra e trabalho figuram entre meus favoritos no cinema brasileiro.
E talvez por essa exagerada expectativa, tenha me frustrado de maneira que ficou um gosto um pouco amargo ao final dessa história baseada no poema homônimo, escrito por Jorge de Lima em 1938, dentro de sua obra “A Túnica Inconsútil”.
Agora vou me contradizer e defender Cacá Diegues, como se tivesse aqui, dentro de mim, duas personalidades distintas brigando nestas linhas, tal qual aquelas consciências de desenhos da Disney sobre os ombros das personagens.
O roteirista – ao lado de George Moura – e diretor fez quase que literalmente uma transcrição do poema. Estão ali todos os dissabores, os amores e os personagens de gerações de uma família circense, cuja história começa na passagem do cometa Halley em 1910, passa pela volta do astro em 1986 e vem até o Século XXI.
O problema é que o poema de Lima deveria ser distribuído na entrada nos cinemas, como uma intrincada legenda para o filme.
Não sendo essa “solução” possível, o público queria ouvir e ver a representação das suas canções preferidas traduzidas em imagens poéticas e, por que não, místicas. E de cara o filme repele isso, ao tirar da nossa imaginação a doce Beatriz e colocá-la no corpo lindo de Bruna Linzmeyer (excelente em cena como sempre), mas que passa longe da doçura da moça que dançava no sétimo céu de Dante.
O filme tem como condutor o personagem Celaví, de Jesuíta Barbosa, que não envelhece e permeia toda a história cuidando, como um anjo, da complicada família e seus descendentes, quase todos nascidos de estupros e violência.
A história – ou a fábula – é dividida e nomeada em capítulos que trazem os principais nomes de cada geração no título, acrescido da época em que estamos no roteiro. De longe – ao lado de Jesuíta, fantástico – a melhor interpretação é a de Mariana Ximenes, como Margarete, aquela que “gravou em sua pele rósea a Via-Sacra do Senhor dos Passos”.
O grande circo Knieps tem em sua sequência final uma das mais emblemáticas cenas que, apesar de ser – repito – tradução quase fiel dos versos de 1938, causam estranheza no espectador que, mesmo após uma hora e meia de filme, ainda espera que sua ânsia de lirismo seja preenchida. “São as suas levitações que a plateia pensa ser truque; é a sua pureza em que ninguém acredita; são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo; mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos”, assinalam os versos de Lima; traduzem as imagens de Diegues.
Há, em minha opinião obviamente, algumas cenas pouco necessárias para o andamento do filme; sequências de nudez – que mesmo úteis para explicitar a violência que sofrem as mulheres daquela família – remetem ao cinema brasileiro dos anos 70; personagens se drogando sem que isso contribua para o roteiro e coisas assim.
Gosto da fotografia de Gustavo Hadb. O colorido é vivo no início e altera seus matizes conforme a decadência do circo e das personagens avança. A iluminação também é muito boa, mesmo que uma cena, em 1910, traga aqueles pontinhos de laser barato sobre as pessoas na plateia do circo.
As borboletinhas azuis que, à primeira vista me encantaram – apesar de parecer um efeito tosco – justamente por remeterem à sequência de filmes como Mary Poppins. Mas a “mágica” fica por aí. A realidade do filme é dura, crua, fria, como o poema.
Se você ainda não viu, não deixe que essas palavras o afastem da experiência de fazê-lo. Leia o poema antes e encare o filme de Diegues. Ele está em sua grande forma como realizador, na direção de atores, na construção de cenas e na arte de fazer cinema.
A Academia não errou em deixar “O Grande Circo Místico” de fora do Oscar. Se eu, apaixonado pelo tema e pela obra – tendo a adaptada recentemente em um espetáculo teatral baseado nas músicas – tive momentos em que não entendi (à primeira vista) a proposta, imagine os votantes de Hollywood.
Mas não espere ouvir as clássicas canções como números musicais coreografados ou interpretados pelas personagens. Com exceção de Lily Braun, penso que ninguém mais ali cantou. As músicas que tornaram a obra tão conhecida são “simples” trilha sonora, que se mesclam, por vezes, a “Blue Moon”, por exemplo.
Se me pedissem para classificar o filme por estrelas, não sei quantas eu daria. Ele ainda me faz pensar, o que – em se tratando de qualquer obra artística – é um de seus grandes méritos.
“Com a verdadeira história do grande circo Knieps muito pouco se tem ocupado a imprensa”. Assim como eu. E deveria fazê-lo mais vezes.