Uma fábula de horror
por Bruno CarmeloNo começo, é difícil saber em qual gênero se insere O Lobo Atrás da Porta. Uma criança é sequestrada, mas logo nos avisam que não é nada sério, trata-se apenas da brincadeira de Rosa (Leandra Leal), uma amante ciumenta que tenta chamar a atenção do homem que ama, Bernardo (Milhem Cortaz). As cenas conjugais entre Bernardo e sua esposa (Fabiula Nascimento) beiram o drama, já os momentos de interrogatório, com um delegado desbocado (Juliano Cazarré), entram no território da comédia.
Entre a seriedade e a descontração, este filme vai tateando o seu terreno. O roteiro avança de acordo com os depoimentos: à medida que os personagens fornecem suas versões e álibis, flashbacks ilustram cada ponto de vista. Logicamente, as versões passam a se contradizer, alguns fios soltos não se conectam, e o espectador tem consciência de estar diante de uma ciranda de mentirosos, com vários segredos a esconder. O diretor e roteirista Fernando Coimbra tem prazer em fornecer falsas pistas, conduzir o espectador a impasses, forçando-o a dar uns passos atrás e buscar novas hipóteses.
Até então, pode-se achar que o maior quiproquó é de ordem da infidelidade, com suspeitas de traição, ciúmes e amores não correspondidos. Mas logo, para a nossa surpresa, as pequenas vinganças passionais ganham contornos muito, muito mais sombrios. É interessante como a história apresenta os personagens como inofensivos, até revelar do que realmente são capazes. Justamente, por construir sua narrativa de maneira leve, as irrupções de violência geram um impacto maior. Um dos grandes méritos da direção encontra-se na maneira de representar a agressão em tela: o conteúdo chocante fica fora da imagem, sugerido pelo som, pelas bordas do enquadramento. Junto de O Som ao Redor, O Lobo Atrás da Porta é um dos raros filmes nacionais a fazer um uso instigante e inteligente do espaço fora do quadro.
Curiosamente, o prazer em esconder é obtido pelo formato scope, ou seja, com a tela bem retangular, que poderia incluir com maior facilidade elementos do cenário e personagens. Mas Coimbra prefere usar o seu enquadramento de maneira claustrofóbica, focando nos rostos, na pele, na nuca de seus personagens. O belíssimo uso de câmera privilegia a ação em enquadramentos estáveis, mas não fixos como se estivessem sobre um tripé. O steadycam de O Lobo Atrás da Porta espera pacientemente pelos movimentos de seus personagens, para fazer ajustes mínimos conforme se deslocam pelo espaço. Não existe muita espontaneidade nesta coreografia precisa de corpos, mas o filme prefere o controle (do ritmo, da montagem, do quadro) à liberdade de ação.
É justo dizer que a história não teria tamanho impacto se não fosse pelas grandes atuações do elenco, especialmente de Leandra Leal. Ela compõe uma figura da amante longe do imaginário machista: nada de uma bomba sexual dependente e passiva, e sim uma mulher de fala doce e olhar obstinado, que sabe oscilar muito bem entre a sedução e a chantagem. O trabalho de voz e os olhares de Rosa são tão expressivos quanto enigmáticos, até a chocante cena final, com um magnífico desempenho da atriz. Esta conclusão, aliás, deve permanecer na cabeça do espectador por um bom tempo... No resto do elenco, Milhem Cortaz compõe um Bernardo tão bruto quanto impulsivo, já Fabiula Nascimento, geralmente expansiva, faz uma mãe serena e de gestos tranquilos. A integralidade do elenco parece estar fora dos seus papéis habituais, mas todos estão à altura do desafio proposto pelo roteiro.
O trabalho do diretor Fernando Coimbra chama a atenção pela grande segurança e domínio técnico. Raros filmes têm uma coerência tão grande entre temática e estética, sabendo oscilar facilmente entre os gêneros. Coimbra, ao lado de Kleber Mendonça Filho, se mostra um dos diretores estreantes mais promissores e empolgantes da nova safra do cinema nacional. Cenas como a referência macabra à história da Chapeuzinho Vermelho, rumo à conclusão, mostram a capacidade do cineasta em compor belas imagens, enquanto sugere um mundo de possibilidades (umas mais atrozes que as outras) para além do enquadramento. Começando como drama ou comédia, O Lobo Atrás da Porta termina como uma magnífica e desconcertante fábula de horror.