Cinema da austeridade
por Bruno CarmeloEm uma área rural do Maranhão, vive um pai com as suas três filhas. Eles passam os dias inteiros a plantar mandioca, cozinhar e comer. O primeiro terço de O Exercício do Caos, chamado de “Exercício”, trata de ilustrar esses seres austeros, sisudos, que trabalham sem jamais olhar uns para os outros, sem conversar ou manifestar o menor desejo. O que eles estão escondendo? Muitos minutos mais tarde, o pai (Auro Juriciê) pronuncia uma raríssima frase, indispensável ao andamento do roteiro: ela explica que a mãe foi embora, talvez de própria vontade, ou sequestrada por um homem conquistador.
Este drama maranhense é um dos raros filmes de autor que buscam o esvaziamento do gênero e a purificação da forma. Tudo é reduzido ao mínimo necessário: quase nada de diálogos, poucos cenários, personagens em número limitado e sem nome, poucos conflitos, raros efeitos sonoros, fotografia noturna simulando a luz natural. A economia estética e narrativa proposta pelo diretor Frederico Machado beira a opção eclesiástica, tentando atingir a virtude pelo retorno ao essencial.
Aos poucos, com a chegada do segundo segmento, “Limbo”, algumas pistas de conflito fazem a trama avançar. Um patrão (Di Ramalho) autoritário aparece, assim como pequenas sugestões de desejo sexual e de incesto, e a mãe desaparecida (Elza Gonçalves) surge de forma fantasmática. Mas ao invés de enveredar por qualquer um desses caminhos, todos eles restam inacabados, soltos, como se a adoção de uma única linha narrativa representasse alguma forma de limitação das interpretações e do interesse do filme. Machado brinca com os significados, sem apontar uma leitura única.
É provável que os melhores momentos de O Exercício do Caos ocorram quando o filme se aproxima do terror, do absurdo (no último terço, “Caos”). Os momentos à beira do lago, as alucinações mata adentro (seriam mesmo alucinações?) trazem às cenas intensidade e ritmo, e a trilha potente passa a ser o único luxo permitido pelo cineasta. Enquanto isso, a cadência da trama parece aleatória, não linear, o que de certa forma solicita o olhar ativo do espectador para buscar possibilidades de interpretação. Pode ser um tanto frustrante para quem esperar indícios claros ou aprofundamento na psicologia dos personagens, mas a trama cumpre o que propõe com sua leitura voluntariamente externa e cognitiva do pai e das filhas.
Este certamente não será um filme para todos os gostos – e nem tem pretensões de ser. Ele dificulta o que poderia ser mais simples (alguns diálogos a mais, por exemplo, poderiam diferenciar as três irmãs, idênticas em personalidade), mas fica evidente que o cineasta toma uma postura política e ideológica ao preferir as sensações à razão. A obra é oferecida como homenagem a Robert Bresson, que embora filmasse de modo realista (contra a assumida artificialidade do filme maranhense), também buscava a redução da linguagem cinematográfica ao indispensável. No caso desta produção, O Exercício do Caos sabe transformar o seu orçamento restrito em uma fonte criativa e uma opção estética, ao invés de uma limitação, e esta escolha representa uma ousadia e inteligência do projeto.