O estúdio Laika é um dos únicos que consegue criar animações, quase totalmente em “stop motion”, com uma qualidade que pode fazer frente às feitas por computação gráfica como as da Disney, Pixar, DreamWorks, entre outras. Provavelmente seu incentivo financeiro para este trabalho não vem apenas das bilheterias, mas também do fato de seu dono ser Phil Knight, co-fundador da Nike. O filho dele, Travis Knight, ser presidente do estúdio, também reforça o prestígio e talvez algum financiamento, da gigante dos esportes, mesmo que indiretamente. Apesar de contar com este suporte a empresa teve de fechar sua área de computação gráfica poucos anos atrás, demitindo alguns funcionários. Entretanto o fato de trabalharem exclusivamente com esta forma de animar, não é demérito nenhum, antes disso mantém o gênero “vivo” e melhora seus filmes a cada novo lançamento.
“Os Boxtrolls / The Boxtrolls” (2014) é o terceiro filme animado do estúdio, sendo que todos foram indicados ao Oscar de Melhor Animação. “Coraline e o Mundo Secreto” (2009), já impressionava pela excelente qualidade, principalmente se assistido em 3D e encontrou no livro de Neil Gaiman a atmosfera perfeita para explorarem sua forma sombria de contar histórias. “Paranorman” (2012) manteve a qualidade, dando vida ao livro homônimo de Elizabeth Cody Kimmel e demonstrando que o estúdio ainda tinha muito para apresentar e contribuir para o mundo das animações. Boxtrolls é a consagração do Laika, mantendo a qualidade da maneira “dark” de suas narrativas e apresentando um roteiro ainda mais maduro, contando com diversas discussões sociais e personagens bem desenvolvidos. O sucesso é tão evidente que a distribuidora Focus, já fechou um contrato para distribuir os próximos três filmes do Laika.
Dirigido por Graham Annable e Anthony Stacchi e baseado na série de livros de Alan Snow, “A Gente é Monstro! / Here Be Monsters”, publicado em 2006. No enredo um menino bebê da família Trubshaw é aparentemente abandonado nas ruas da fictícia Pontequeijo (Cheesebridge), cidade com ares vitorianos. Adotado por curiosos monstrinhos azuis que vivem nos esgotos, que catam diferentes peças para criarem algumas bugigangas inventivas e se vestem com caixas, sendo batizados com os nomes dos respectivos produtos estampados nelas (Peixe, Chulé, Picles, entre outros). Ele recebe o nome de Ovo (voz de Isaac Hempstead-Wright, o Bran Stark de Game of Thrones) e não se reconhece como um ser humano. Seu ponto de vista muda quando ele conhece uma menina, a mimada Winnie (voz de Elle Fanning), filha do governante da cidade, que o ajuda a encontrar e tentar libertar sua família adotiva de monstrinhos, das mãos de um caçador, que testemunhou o encontro dos pequenos trolls azuis com o bebê, pensando que eles o haviam sequestrado e matado.
Apesar de ser uma produção voltada para o mundo infantil, o filme se conecta também com os adultos, principalmente através do seu conteúdo social. A comunidade pseudo burguesa retratada, com uma divisão baseada na cultura do queijo e na cor dos chapéus, possui várias camadas. O vilão Arquibaldo Penélope Surrupião (voz de Ben Kingsley) , persegue e demoniza os pacíficos trolls em troca de ser admitido no grupo do chapéu branco, a elite política da cidade e monopolizadora dos queijos mais saborosos da localidade, ainda que Surrupião seja ironicamente alérgico aos laticínios. Arquibaldo também é um excluído e só ascende na cadeia “alimentícia” por que se torna útil, como um “leão de chácara” repressor, utilizando uma minoria diferente e desprivilegiada, como um inimigo para combater e o medo de todos, como uma forma de poder.
A fotografia escura, que remete a filmes clássicos de terror adotada pelo Laika é sempre uma bela experiência visual, principalmente se vista em 3D. Só encontramos linguagem como essa em filmes produzidos por Tim Burton, como “O Estranho Mundo de Jack / The Nightmare Before Christmas” (1993), “A Noiva Cadáver / Corpse Bride” de 2005 e “Frankenweenie” (2012). Burton certamente é uma influência, até por que o diretor de Coraline é o mesmo de o Estranho Mundo de Jack. Seu cenário, lúdico e realista ao mesmo tempo, rico em detalhes, complementa o seu desfile de personagens sempre bem desenvolvidos. Além do vilão, temos a representação do político sem noção de responsabilidade, que quer criar um gigantesco queijo, como um monumento para ser lembrado, deixando de construir coisas mais importantes, como hospitais infantis. E ainda os capangas com discussões éticas sobre o bem, o mal e a sua própria existência. Não deixe de assistir as cenas após os primeiros créditos finais, pois elas são tão surpreendentes e importantes, quanto o filme em si, da mesma forma que foram em Paranorman, mas desta vez, demonstrando o trabalho descomunal dos animadores.
A relação paternal explorada no longa-metragem, também constrói uma história ideal, para se assistir em família e fazer com que os pais espectadores, mais atentos, reflitam sobre si mesmos e suas atitudes com os filhos. A relação afetiva de Ovo com o pai adotivo Peixe é demonstrada de uma forma muito bonita, assim como a descoberta de seu pai biológico. Temos também a relação de Winnie com o Sr. Roquefort, que a mima com coisas materiais, mas a negligencia de afeto. Os três pais tem um contraste muito didático em tela, enquanto o pequeno troll tem um peixe estampado em sua caixa, que parece uma gravata de um trabalhador comum, o burguês pai da menina é o típico glutão bonachão que acha que a filha está perfeitamente protegida por sua posição social. O terceiro é uma mistura de cientista e louco, que remete aos diversos inventores da história humana.
São muitos os comentários que dizem que os monstrinhos azuis, são uma tentativa de emular os Minions, mas se os boxtrolls, não são tão engraçados, com certeza carregam mais conteúdo “fora da caixa”. Como já mencionado, o Estúdio Laika, junto com o Ghibli, são um dos poucos que ainda conseguem rivalizar com as animações da Disney, Pixar e Dream Works, tanto em qualidade, quanto em bilheteria. Claro que deve-se considerar as devidas proporções e o fato de que os dois primeiros estúdios mencionados não contam com o mesmo marketing que os três maiores. Nosso dever como espectadores é prestigiá-los no cinema e desejar que tenham uma vida longa e superem as dificuldades, como as que o estúdio de Hayao Miyazaki vem sofrendo nos últimos anos.