Baseado no livro do jornalista iraniano Maziar Bahari, 118 Dias / Rosewater (2014) relata os dias que ele passou em cativeiro, quando foi cobrir as eleições de 2009, em sua cidade natal Teerã, para a revista Newsweek. Preso sobre a alegação de espionagem, após gravar atos de violência contra manifestantes e enviar para o canal BBC, ele passou por diversas torturas em sua maioria psicológicas. Apesar de ter nascido no Irã, Bahari possui cidadania canadense e vivia na Inglaterra, o que para seus algozes, o transformava em um agente do ocidente. Esta visão foi reforçada pelo fato de o jornalista ter se relacionado com algumas pessoas que se opunham ao governo de Mahmoud Ahmadinejad, mesmo que por alguns poucos dias e por seu pai e sua irmã terem sido presos por serem comunistas no passado.
Dirigido pelo apresentador Jon Stewart, ancora do programa The Daily Show, que também assina a adaptação do roteiro. Seu longa-metragem de estreia não poderia ser mais interligado com sua própria trajetória. Conhecido por misturar jornalismo, comédia, política e entretenimento ele consegue traduzir-se em tela e discutir o papel do comunicador nas mudanças sociais. Stewart se tornou um dos principais apresentadores americanos, principalmente por satirizar os governos Bush e Obama. Entretanto em 118 Dias, não é a comédia o foco do seu discurso e sim o tragicômico dos conflitos culturais. E é pelo ridículo de situações como estas que o longa se interessa. Seja a liberação, principalmente sexual, do ocidente que aterroriza os regimes islâmicos mais conservadores ou o preconceito que auto rotula qualquer oriental que siga o Islã, como terrorista.
A escolha pelo ator mexicano Gael García Bernal, protagonista de filmes, também com um conteúdo político, como Diários de Motocicleta (2004) e No (2012) é acertada. O ator sempre lida bem com o peso da trajetória de seus personagens, expressando de forma convincente os sentimentos e as reações nas diferentes situações, indo do choro ao riso sem parecer artificial, até mesmo durante uma dancinha para desopilar o tédio do cárcere. Seu contraste com o ator dinamarquês Kim Bodnia (super bronzeado para se passar por um descendente Persa) atribui um ar de realidade, pelo fato de os dois apresentarem um desconforto em tela cada vez que interagiam, ao reviverem a violência encenada.
As gerações de conflitos sociais iranianos também estão representadas no enredo. Maziar reencontra as memórias da irmã na prisão e a sua própria consciência representada na persona do pai, ainda que em alucinações. Se antes ele julgava seu genitor por ter crescido sem a figura paterna, agora ele se identifica com ele, seja pelo fato de ter deixado a esposa grávida na Inglaterra, ainda que pensasse ser diferente, por não ter previsto ou provocado sua prisão, mas também por querer mais liberdade para sua terra natal. E é nos diálogos de Bernal com o pai imaginário interpretado por Haluk Bilginer, a mãe (Shohreh Aghdashloo) ou a esposa (Claire Foy), que vamos nos espelhando no personagem, nos identificando com suas relações pessoais e reconhecendo as semelhanças com os cativos e torturados de ditaduras de outros países.
A fotografia cinzenta com uma câmera quase documental remete aos recentes documentários sobre a primavera árabe, como o “A Praça Tahrir / El Midan” (2013), produzido pelo Netflix. Apesar de não ser um filme com direção inovadora, no mínimo ele reabre discussões sobre choques culturais e de ponto de vista, principalmente no que tange nossos pré-julgamentos sobre as culturas muçulmanas, orientais e os deles pelas ocidentais e judaico-cristãs, entre outras. Apesar de ser um erro tentar comparar escalas de técnicas de tortura, a sofrida pelo jornalista iraniano, não é mais chocante, do que aquelas adotadas pelos EUA nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, ou mesmo pelo exército brasileiro durante os anos de chumbo. Vide documentários como “Procedimento Operacional Padrão / Standard Operating Procedure” (2008) ou filmes como “Batismo de Sangue” de 2006.
Em tempos em que as pessoas se manifestam nas redes sociais, contra ou a favor da ditadura, Rosewater é um filme que deveria ter mais evidência nos cinemas mundiais e brasileiros e estar sendo discutido nestes debates. Nele encontramos visões culturais e conflituosas, sobre regimes governamentais fechados, sem direitos e liberdades, onde a tortura é uma prática institucionalizada. Certamente que o Brasil é muito diferente do Irã, que os conflitos religiosos, por aqui, não são tão acirrados, mas provavelmente as comparações não são nem de longe absurdas. É uma pena que ele não esteja sendo exibido em muitas salas e provavelmente não chegue ao alcance do grande público.
Talvez alguém questione o que é que 118 Dias tem a apresentar de diferente dos inúmeros filmes e documentários brasileiros e internacionais sobre ditadura e tortura. Mas ninguém pode negar que qualquer história destas merece ser contada, como uma reparação histórica para a vítima e como uma lembrança, para que não se repita. Mas o mais relevante para nossos dias atuais é que os fatos não ocorreram há várias décadas atrás como no Brasil, mas em 2009, pouco mais de cinco anos. E isto reforça a ideia de que governos totalitários, ainda utilizam muito esta prática, não que os democráticos as tenham abolido, mas certamente elas ocorrem por motivos diferentes, ainda que igualmente condenáveis e mais raramente contra jornalistas que estão cobrindo os conflitos sociais.