ACIMA DAS NUVENS – CLOUDS OF SILS MARIA
“O passado é uma névoa“ H. Pinter
Uma mágica serpente de nuvens escorre pelo desfiladeiro nos Alpes, marcando e interferindo de maneira inexorável no tempo e existência das personagens. Da mesma forma, nos aproxima e nos transporta através dos mistérios da memória e experiências que as constituem. E assim, impregnados dessa verdade poética, somos arrastados pelo turbilhão de sensações que se iniciam já na primeira sequencia, onde o enjoativo balanço do trem nos captura de vez, abrindo todos os nossos sentidos para a imersão no universo do filme. O tempo, esse é o personagem principal. A fixação num tempo imaginário e fundador do que se imagina que cada um é em contraste ao que a vida vai demandando nos encontros e desencontros que tece, a fantasia do que poderia ter sido em caso de outras escolhas, a angústia de falhar no ideal, são os conflitos que compõem a dramaturgia. O ofício do ator, as leis do mercado, a arte em contraposição ao mundo do espetáculo, são as roupagens que dão corpo ao roteiro. Em termos gerais, os temas de inúmeras obras. Mas é nos detalhes que o filme mostra sua transcendência. Ao nos remeter a Bergman, especialmente PERSONA e MORANGOS SILVESTRES, o diretor mostra ali sua fonte, ao homenagear um mestre criando algo novo. O que sua personagem Maria Enders tem enorme dificuldade em fazer e com o que se debate, empacada num tempo mágico dos seus 18 anos iniciais. A reverencia quase religiosa ao seu mestre e mentor que não consegue superar, mesmo morto, e que utiliza como escudo para não ver a passagem do tempo, isolada em seu próprio mundo onde cabe apenas uma fiel escudeira, uma outra ela mesma mais jovem. Ela, jovem. Por isso não consegue representar a outra personagem da peça, a que tem a sua real idade, pois está fixada no outro tempo e não quer abrir mão disso. A mudança é sutil – e difícil – cheia de idas e vindas, a que ela resiste – e que vai se evidenciando no corte de cabelo, nas roupas, cada vez mais desprovidas de qualquer glamour, no olhar silencioso e soberbamente cheio de significados de Juliete Binoche. O duelo metafórico, preciso enquanto dramaturgia, trazido pelo embate entre ela e sua jovem assistente na cena do ensaio da peça, um jogo de cena - ponto alto do filme, nos vai conduzindo de modo brilhante para a virada final. O silencio da Binoche e simplicidade com que ela nos revela e nos torna cúmplice do mal estar na cena do jantar, quando a jovem atriz e seu affair escandaloso denunciam o avassalador valor de mercado do mundo das celebridades, já valeriam o filme. E se completa com a cena onde nossa protagonista – a Binoche - a respeito do momento final de sua personagem, interpela sua jovem colega de palco – “mas não, sua personagem já era aqui, acabou, ninguém mais pensa nela”, responde a atriz. A resolução, a aceitação, vem, paradoxalmente como convém à dramaturgia, através do convite de um jovem cineasta, que a quer para uma “cyber” protagonista de um filme moderno, tecnológico, onde a personagem teria o perfil da jovem atriz e ele responde – “a arte não tem idade”... ou seria – o teatro não tem idade, o que sempre ouvi Ítalo dizer....
Por fim, a performance das duas jovens atrizes – justamente representantes desse mesmo mercado – são arrebatadoras – como defendia sua assistente ao insistir no talento da jovem atriz menosprezada pela nossa protagonista; e lavam a alma numa mensagem subliminar de que há na modernidade valor, e digno de nota.
Ester Jablonski