A arte de não se levar a sério
por Francisco Russo"Quando se trata do destino do mundo, é meu trabalho" (Hobbs, Luke; Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw)
Com oito filmes na bagagem - e mais um a caminho, previsto para 2020 -, a franquia Velozes & Furiosos está mais que estabelecida no imaginário popular. A mescla de um elenco carismático com sequências de ação absurdas e mirabolantes se tornou a tônica já há alguns filmes, permeado por um humor debochado e autoindulgente, típico de quem não se leva nem um pouco a sério. Em seu primeiro spin-off, Hobbs & Shaw investe forte neste caminho em detrimento de outra característica básica da série: os pegas de carros.
De certa forma, é compreensível. Sem Dom Toretto e seus asseclas, a essência automobilística se esvai muito devido à própria natureza de seus atuais protagonistas. O foco aqui está muito mais nas diferenças entre Luke Hobbs e Deckard Shaw, mais uma vez personificados por Dwayne Johnson e Jason Statham, ressaltadas não só nos inúmeros confrontos verbais entre ambos - com direito a boas provocações gratuitas típicas de alunos da 5ª série, com bem mais testosterona -, mas também visualmente. Neste sentido, o início é emblemático: da paleta de cores entre o quente e o azulado ao clima chuvoso de Londres em contraste com o solar de Los Angeles, Hobbs e Shaw são como água e óleo, não combinam nem se misturam, mas precisam trabalhar juntos em busca de um bem comum - por motivos distintos, é claro.
Para tanto, Hobbs & Shaw tanto bebe da fonte de sua cronologia, resgatando a personagem de Helen Mirren para inserir na trama a irmã de Shaw, quanto aposta em algo inédito na franquia até então: o flerte com a ficção científica, aqui personificada pelo vilão de Idris Elba, um homem alterado a partir de experimentos tecnológicos de forma a promover a evolução da espécie humana. Sim, é isso mesmo que você acaba de ler: o exagero das cenas de ação chegou também à narrativa. O que não é ruim, pelo contrário.
A grande sacada de Hobbs & Shaw - e dos melhores filmes da franquia, Velozes & Furiosos 6 e 8 - é a consciência do que deseja ser. Não há aqui o menor indício de prepotência, em nome de uma aventura descerebrada que tenha como única função entreter. Diante disto, os roteiristas Chris Morgan e Drew Pearce acertam em cheio ao espalhar diálogos deliciosamente ridículos, que tão bem ressaltam a falta de seriedade de tudo em cena: de Idris Elba se apresentando como o vilão do filme a The Rock contando quantas vezes já salvou o mundo, do infame "eu teria medo se tivesse coração" ao surreal "Eu como bala o tempo todo, no café da manhã e no almoço" sucedido pelo rebate "está na hora de jantar" - com um revólver apontado, é claro.
Hobbs & Shaw é assim, e não é demérito algum em se assumir exagerado e ridículo quando bem feito. Repleto de piadas em torno das personas de The Rock e Statham, o filme ainda tem o belo acréscimo de Vanessa Kirby, que não só reafirma o carisma visto em Missão Impossível - Efeito Fallout quanto demonstra desenvoltura e competência nas cenas de ação. Entretanto, é na forma como o filme trata sua personagem que está, também, seu calcanhar de Aquiles.
Em determinado momento do filme, Statham e The Rock discutem sobre um possível interesse do parceiro em relação à sua irmã, logo rebatido com um "você acha que estamos em um filme de 1955?". A ótima piada faz referência não só aos filmes de ação de antigamente, quando as mulheres eram mero interesse do macho alfa protagonista, como também dialoga com os tempos atuais, pós #MeToo. Entretanto, o que se vê na metade final de Hobbs & Shaw é justamente uma diminuição da personagem de Vanessa Kirby na história, de forma que cada vez mais se torne a donzela (moderna) que precisa ser salva. Ou seja, o gancho em questão funciona de imediato mas também escancara o quanto pouco mudou também neste filme, em relação a como mulheres são representadas em filmes de ação. Oportunidade desperdiçada, infelizmente.
Há também outro problema em Hobbs & Shaw, em relação à duração. Por mais que o duelo nos corredores entre The Rock e Statham até seja divertido, todo o trecho em Moscou soa desnecessário em termos de narrativa - e até mesmo incoerente, dentro da proposta do filme -, o que provoca um certo cansaço quando o ato final enfim começa. Os 136 minutos soam (também) exagerados, assim como as três cenas pós-créditos que pouco acrescentam ou divertem, ou mesmo a caricata participação especial de Ryan Reynolds, mais uma vez assumindo a persona do deboche autodepreciativo de Deadpool. Funciona em sua primeira aparição, mas a repetição contínua de tal proposta a desgasta.
Com ecos da franquia Velozes & Furiosos, especialmente em relação à proposta de inserir na narrativa as família dos protagonistas - referência explícita ao mantra repetido eternamente por Dom Toretto -, Hobbs & Shaw é um filme divertido que consegue encontrar uma identidade ao mesclar ação exagerada e um forte tom de deboche, com uma pitada de ficção científica entremeada a muita rivalidade. Como entretenimento funciona bem, muito também devido ao carisma e a disposição em zoar a si mesmo vinda de seus protagonistas. Méritos também para o diretor David Leitch, não apenas pelos contrastes visuais decorrentes de seus personagens principais, mas por detalhes bem-humorados como o inconfundível som típico de Transformers nas mudanças decorrentes na moto de Idris Elba e, especialmente, pelas boas cenas de ação, impulsionadas pela ágil movimentação de câmeras. A alucinada sequência da perseguição ao helicóptero no ato final é seu maior exemplo, mas vale também ressaltar o embate entre The Rock e Kirby e ainda o não menos insano salto em queda livre de um edifício, para capturar inimigos.
Ou, como Luke Hobbs diria, apenas o necessário para salvar o mundo pela quarta vez.