Este ano um filme reunindo Batman e Superman finalmente estreou nos cinemas, um encontro que esperou mais de 75 anos para acontecer. O filme veio acompanhado de polêmica pelo fato da versão cinematográfica ter sido projetada com vários cortes – 30 minutos cortados e que deveriam estar ali, provavelmente para aumentar o número de sessões e gerar mais renda. Após alguns meses, o estúdio lançou a versão integral do filme em versão blu-ray com 3 horas de filmagens. Apesar desses problemas, imagino que o filme seja o maior blockbuster político já produzido. Nunca um filme com discussões políticas tinha alcançado tão grande bilheteria e número de home videos vendidos, principalmente a versão integral em blu-ray.
Apesar de muitos identificarem como a principal discussão política do filme a problemática sobre se uma entidade com grande poder, com grande força de destruição, respeitaria leis internacionais – com o Superman apresentando-se como uma alegoria ao poder coercitivo acumulado pelos EUA, o qual, por sua evidente superioridade militar sobre os exércitos do restante do mundo, passa por cima de qualquer jurisdição internacional na busca de seus interesses políticos e econômicos -, outros veem o filme como uma crítica ao fascismo permeado de simbolismo religioso.
Como a relação entre um grande poder acumulado em uma entidade e as leis é bem explícita nos diálogos do filme, vou me concentrar na questão do fascismo apresentado no longa. Um fascismo representado pelo cansado e frustrado Batman.
O filme começa com a luta entre o Superman e o General Zod de Krypton em Metrópolis. Essa luta dizima boa parte da cidade e faz com que muitos vejam o Superman com grande desconfiança. Entre os presentes na cidade durante a batalha estava o bilionário Bruce Wayne, alter ego do Batman, ou vice-versa.
Alguns meses se passam e o Superman torna-se um assunto corriqueiro na cidade, com alguns apoiando o herói e outros desejando que ele vá embora. Enquanto isso, o psicologicamente debilitado Batman torna-se cada vez mais obcecado pelo alienígena. Cada dia que passa, apesar das boas intenções do Superman, Batman o enxerga cada vez mais como uma ameaça. A vida do Cavaleiro das Trevas passa a ser dedicada ao herói de Krypton, numa obsessão por encontrar maneiras de destruí-lo. Essa fixação constante por uma suposta ameaça é uma das características do fascismo. O fascista passa a se ver ameaçado por forças que ele imagina terem poder para destruir seus valores, crenças e modo de vida. Há um sentimento de iminência, de imediaticidade, em relação a sua destruição pessoal pelas forças de seu inimigo. O fascista tem por característica superdimensionar o tamanho da suposta ameaça que enfrenta. E faz isso para aumentar sua sensação de heroísmo pessoal frente ao inimigo. O fascista se enxerga como um herói enfrentando forças muito além das suas próprias possibilidades. Há um culto ao heroísmo e à morte heroica pelo fascista, o qual, de acordo com Umberto Eco, “aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte.” No filme, vemos que Batman resolve apostar tudo na guerra pessoal contra o alienígena, o qual ele vê como uma ameaça. Ele aposta sua vida e julga que finalmente sua existência dedicada à luta vai ter valido a pena. Ele quer morrer como um herói ao destruir a ameaça externa.
Vemos no começo do filme, ao olhar para os céus onde estava o Superman de forma irritada e impotente, que o Batman – um homem frustrado pela sua luta contra o crime, a qual ele via como quase inútil, pois “os criminosos são como ervas daninhas, você retira uma e nascem outras no lugar” – se sentia abalado pela impossibilidade de enfrentar o alienígena. Uma “sensação de impotência que torna homens bons cruéis”. Um homem que já se sentia impotente por não conseguir obrigar o mundo a ser como ele queria que fosse – afinal, “as coisas só fazem sentido se nós as obrigamos a fazer” -, desaba ao perceber que uma nova força maior ainda surgia. Um homem para quem “o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente” (Umberto Eco) se desesperava porque o inimigo que o fazia se sentir inferior era um alienígena, um estrangeiro, alguém que não nasceu em sua terra e não compartilhava de seu sangue. Contudo, apesar de ser poderoso, ele poderia ser derrotado, porque não era um homem. O Superman, para o Batman, era menos do que um homem, era uma coisa sem humanidade, a qual merecia ser caçada como um animal selvagem.
"Os adeptos do fascismo devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais.”
Superman era poderoso, mas não era humano. Essa contradição na mente do fascista entre a superioridade e a inferioridade simultâneas do inimigo se resolve pela desumanização do adversário, o qual passa a ser tratado como não humano. E como matar um não humano? Com indignidade. Pisando em sua garganta, atravessando seu peito com uma lança de caça.
No filme, Lex Luthor nos diz que apenas estimulou a raiva do Batman pelo Superman, e ele fala a verdade. Ele só estimulou algo que já estava lá. É uma das características do fascista aceitar cegamente apenas aquilo que justifica seu ódio. Quando Alfred tenta argumentar com seu patrão a respeito da insanidade de levar sua luta adiante, Bruce Wayne não dá ouvido. Quando o Superman tenta o diálogo, a mesma coisa acontece. O fascista não está interessado no diálogo, não está interessado naquilo que pode mostrar-lhe o quanto ele está errado. Ele aceita apenas o que fornece razões a sua crença sobre o inimigo. Ainda mais se a dissuasão vier de um empregado como Alfred ou de um estrangeiro considerado menos do que um humano como o Superman. Tem uma parte no filme que uma mulher fala que o Batman não entende o diálogo, que ele só entende os punhos, a violência. Ela fala "um homem como aquele não entende as palavras. Sabe o que ele entende? Os punhos"
Quer dizer, ela tá falando que não dá para tentar dialogar com extremistas, porque eles não querem saber disso. Não ligam para argumentos e razões...
O elitismo é outra marca do fascista. Para o fascista, a ação se justifica pela própria ação e não é preciso pensar muito sobre o inimigo. Ele é o inimigo, é uma ameaça e pronto. Fim de conversa. A ameaça deve ser exterminada.
Na versão dos cinemas algumas cenas envolvendo Clark Kent foram cortadas, e, por essa razão, só podem ser vistas no blu-ray de três horas. Nessas cenas, vemos o repórter do Planeta Diário a investigar as ações do Batman em regiões pobres de Gotham City. Superman conversa com os moradores para saber como eles veem o Homem-Morcego. Ele percebe que muitos o enxergam como uma fonte de coerção constante e violência. Um senhor de idade até mesmo diz que não é bom andar durante a noite pela vizinhança, pois “ele está com fome e está caçando”. Caçando os “não humanos”, a ralé, os pobres. Todavia, mesmo entre os pobres, há aqueles que dizem que o Batman está certo, e que ele só espanca bandidos, só espanca quem merece ser espancado.
Batman, o frustrado, o psicologicamente debilitado, o elitista aristocrata, passa até mesmo a matar seus adversários. Ele não o faz a sangue frio, mas isso não significa que se importe com a vida daqueles que ele combate. “O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social” (Umberto Eco). Dessa forma, a frustração em relação a uma realidade que não se adequa ao que ele deseja como ideal e o medo infundado em relação a um inimigo externo ameaçador, tornam o Batman cada vez mais psicótico e obsessivo. A realidade, apesar de ser forçada a fazer sentido, não se encaixa nos valores do Batman, não funciona como ele queria que funcionasse. O desprezo por valores diferentes e pelo conflito entre eles é outra característica do fascista.
No fim do filme, o Deus morre como homem para absolver a humanidade, representada pelo Batman, de seus pecados de violência, ódio pelo diferente e intolerância. Basicamente Jesus.
Tem também a questão da empatia pelo diferente.
Na cena em que o Superman ia ser morto pelo Batman fascistão e o Batman descobre que a Martha, mãe do Superman, ia morrer, ele se vê no outro. Ele lembra que, assim como o Superman, ele era um menino indefeso e desesperado para salvar a mãe. Ele percebe que ele está agindo como o cara que matou sua mãe a sangue frio.
O extremista com ódio pelo diferente finalmente se coloca no lugar do diferente, que é o Outro, e percebe que ele é uma pessoa também. Com fraquezas, família, medo, etc. Ele descobre a empatia pelo diferente.
Há também no filme questões teológicas, como o Batman querer provar que o Superman não é um Deus, pois, se assim fosse, Deus existiria e seus pais, então, não deveriam ter morrido no beco. O Superman como uma espécie de Jesus, esculachado em vida e reverenciado na morte. O fato do monstro final chamar-se “Juízo Final” e os deuses estarem lutando numa espécie de inferno de fogo enquanto o humano só pode assistir à luta perplexo.
Como qualquer filme, ele pode ser interpretado de diversas formas.