O sino-estadunidense Bruce Lee (1940-1973) tornou-se o símbolo máximo e uma lenda das artes marciais como praticante, instrutor e, principalmente, como astro do cinema. Isso se deve não somente ao seu estilo único e revolucionário de lutar, mas também por ter sido um bom ator, de reconhecida competência. Antes de fixar residência nos EUA, já havia participado em mais de 20 filmes em Hong Kong (desde que era um bebê até chegar à adolescência!). Na América, fez várias participações em seriados de TV, sendo que alguns deles conhecidos no Brasil como, por exemplo, Ironside (1967-1975), As Noivas Chegaram (1968-1970) e Batman (1966-1968, Santa participação especial, Batman!). Sua estréia no cinema de Hollywood foi no filme policial Detetive Marlowe em Ação (1969) estrelado por James Garner (de Maverick), no qual fez o seu único papel de vilão.
Porém, foi o seriado O Besouro Verde (1966-1967) - no qual interpretava o auxiliar do herói, Kato - que voltou a abrir-lhe as portas para o cinema de Hong Kong (lá, o programa chamava-se O Show do Kato) e permitiu que realizasse as produções que, assim como seu estilo de luta, revolucionaram os filmes de Kung Fu que até então eram feitos.
Para aqueles que não sabem, antes de Bruce, os filmes de Kung Fu eram todos passados na época antiga da história da China. A explicação para isso era simples e muito lógica: por mais demoníaca que seja, nenhuma arte marcial resiste a um tiro de revólver. Aliás, basta ver o primeiro filme da franquia Indiana Jones - Os Caçadores da Arca Perdida - para constatar essa lógica na famosa cena de Indiana Jones contra o vilão espadachim na qual a platéia vai, em apenas alguns segundos, do suspense a uma explosão de gargalhadas.
"E como os filmes de Bruce Lee revolucionaram o cinema de Kung Fu?", pode perguntar alguém. A explicação é igualmente simples: passar os filmes na época atual e ignorar a "lógica do revolver". A fórmula deu tão certo que é seguida até hoje.
Os filmes feitos por Bruce em Hong Kong foram um grande sucesso na Ásia e se tornaram clássicos do gênero: O Dragão Chinês (1971), A Fúria do Dragão (1972, que tem um final antológico), O Vôo do Dragão (1972, que ficou marcado por ser a estréia de Bruce na direção e pela participação de Chuck Norris no único filme no qual é morto no final) e o inacabado O Jogo da Morte (1972), do qual voltaremos a falar mais à frente.
Em 1973, Bruce Lee atuou em Operação Dragão, a primeira co-produção de Hollywood com Hong Kong (dos estúdios Warner Brothers e Golden Harvest) que tornou-o um astro internacional e ainda lançou nomes que, posteriormente, também fariam sucesso como astros de Kung Fu: o estadunidense Jim Kelly (de Jones, o Faixa Preta), e os chineses Bolo Yeung (O Grande Dragão Branco), Sammo Hung (da série de TV Um Policial da Pesada) e Jackie Chan (franquia A Hora do Rush, e maior nome dos filmes de Kung Fu da atualidade, tendo recebido um Oscar honorário, em 2017).
Então, aconteceu aquilo que ninguém esperava: em 20 de julho de 1973, aos 33 anos incompletos, e três semanas antes da estreia de Operação Dragão, Bruce Lee morreu de um edema cerebral (inchaço no cérebro) em circunstâncias ainda hoje mal explicadas e que geraram teorias de conspiração que iam desde envenenamento até mesmo um golpe fatal com efeito retardado!
Foi a partir de sua surpreendente, trágica e inesperada morte que Bruce Lee se tornou lenda e ícone Pop. Até aí, nada de estranho, pois acontece com muitos artistas falecidos terem a sua carreira cultuada após o passamento. Porém, o que veio depois é que foi de lascar...
Dizem que o maior tipo de traição é contra aqueles que morreram, pois eles não tem como defenderem-se dessa agressão. E Bruce Lee deve ter rolando na tumba com as traições que vieram após a sua partida desse mundo. Para começar, a Bruceploitation, uma onda de filmes de Kung Fu - a maior parte de baixíssima qualidade - com "clones" de Bruce imitando todos o trejeitos e maneirismos de seus filmes e, se não bastasse, até o seu nome. Confiram a lista de nomes de alguns desses "clones":
Bruce Li
Bruce Lie
Bruce Le
Bruce Lei
Bruce Ly
Bruce Lai
Bruce Liang
Bruce Ree
Bruce K. L. Lea
Brute Lee
Dragon Lee
Myron Bruce Lee
Bronson Lee
Mesmo quem não é fã de Bruce Lee ou de filmes de Kung Fu, ao ver essa lista, não deixa de sentir vergonha alheia...
Mas, o pior ainda estava por vir: O Jogo da Morte, o filme inacabado de Bruce, foi lançado postumamente, em 1978, e de modo muito inescrupuloso utilizando não apenas as cenas gravadas por Bruce (que inclui uma luta com o astro do basquetebol estadunidense Kareem Abdul-Jabbar) junto com cenas novas gravadas por um "clone", mas também as do seu funeral! E, como se não fosse o suficiente, ainda tiveram a coragem de lançar uma sequência, O Jogo da Morte 2!
A pá de cal veio em 1986 com o lançamento do filme Retroceder Nunca, Render-se Jamais. Nessa "bomba", o fantasma de Bruce Lee - interpretado por um "clone"- aparece para ensinar um garoto os segredos do Jeet Kune Do (estilo de luta criada por Lee) a fim de enfrentar bandidos que querem destruir a academia de artes marciais de seu pai. O único mérito do filme foi o de ter revelado o artista marcial belga Jean-Claude Van Damme (Os Mercenários 2).
Essa situação grotesca só iria mudar em 1993, exatos 20 anos após a morte de Bruce, com o lançamento do filme Dragão: A História de Bruce Lee, com direção de Rob Cohen (franquia Velozes e Furiosos) e com Jason Scott Lee (de O Livro da Selva. Jason, apesar do sobrenome, não é nenhum "clone") no papel principal. O filme é uma respeitosa e emocionante biografia, baseada quase que inteiramente no livro Bruce Lee: The Man Only I Knew (Bruce Lee: O Homem Que Apenas Eu Conheci) escrito pela víúva de Bruce, Linda Lee, foi um sucesso de público e crítica e resgatou o bom nome do Mestre do Jeet Kune Do. E para aumentar a emoção, o filme foi dedicado ao filho de Bruce e Linda, Brandon Lee (O Corvo), morto apenas dois meses antes em circunstâncias igualmente mal explicadas...
A passagem de Bruce Lee por este mundo é um daqueles casos no qual a vida se confunde com a arte e acaba por gerar lendas que, como sabemos, sempre tem um fundo de verdade. E é uma dessas lendas que nos é contada em A Origem do Dragão.
O ano é 1965. Bruce Lee (o artista marcial chinês Philip Ng) vive já há alguns anos nos EUA e tem uma escola de artes marciais frequentada, entre outros, por Steve McKee (o estadunidense Billy Magnussen, de Ponte dos Espiões), um jovem triste, solitário e que busca um objetivo na vida. Enquanto isso, na China, o Mestre Shaolin Wong Jack Man (o também chinês Xia Yu, de Amor) participa de uma exibição contra um Mestre de Tai Chi Chuan. No calor da luta, perde o controle e quase mata o seu adversário.
Como autopenitência, Wong Jack Man decide ir até San Francisco, nos EUA, onde irá trabalhar como lavador de pratos em um restaurante até sentir que pagou pelos seus pecados e, assim, poder retornar para a China em paz. Steve lê em um jornal sobre a chegada do Mestre Shaolin e vai até o porto recebê-lo. Bruce também fica sabendo da chegada de Wong e fica preocupado, pois sabe que ele é o único que pode igualá-lo - e até vence-lo - em uma luta. Movido pelo orgulho, Bruce Lee lança um desafio a Wong Jack Man: uma luta sem regras que irá decidir o destino de ambos.
É inevitável uma comparação entre A Origem do Dragão e Dragão: A História de Bruce Lee, pois ambos falam sobre a vida de Bruce, embora o primeiro seja sobre um episódio específico, enquanto o segundo fala de sua vida como um todo. Se limitarmos a comparação unicamente em termos e quesitos cinematográficos, Dragão é bem melhor que A Origem, pois este peca por não ser historicamente preciso.
Uma das imprecisões históricas é a presença de Billy Magnussen como Steve McKee, um personagem que jamais existiu. Sua presença se justifica por dois motivos: para amarrar um romance com a bela Xiulan (a atriz chinesa Jingjing Qu) e também para promoção, pois Billy é um daqueles atores que, volta e meia, os produtores de cinema apostam sua fichas. Para se ter uma ideia, Billy já está escalado para a versão live action do desenho animado Aladin, dos estúdios Disney, com direção de Guy Ritchie (Sherlock Holmes e o Jogo de Sombras) e previsto para ser lançado em 2019.
Dragão, também fala da luta entre Bruce e Wong, mas, talvez por conveniência e para evitar alguma ação na justiça, o lutador que enfrenta Lee no filme chama-se Johnny Sun e é derrotado, tal como descrito no livro de Linda. Bruce dizia que o motivo dessa luta foi que a comunidade chinesa de San Francisco não queria que os brancos e negros aprendessem os segredos do Kung Fu e, como insistia em continuar com sua escola, enviaram Wong para lutar contra ele. É aí que a polêmica começa.
Ao contrário de Steve McKee, Wong Jack Man é uma pessoa real, está vivo até hoje (nasceu no mesmo ano que Bruce), tem uma academia de Kung Fu nos EUA na qual lecionou por 45 anos até aposentar-se, em 2005. Wong sempre contestou a versão de Bruce Lee, afirmando que nunca teve nada contra ensinar Kung Fu para os não-chineses e que foi lutar contra Lee devido ao desafio que este fez após uma exibição no bairro de Chinatown dizendo que poderia derrotar qualquer lutador em San Francisco.
E, como não poderia deixar de ser, tem uma perspectiva diferente da luta travada entre ambos. Enquanto a biografia escrita por Linda, dizia que a luta durou cerca de três minutos com vitória de Bruce, Wong afirma que, na verdade, a luta durou entre 20 e 25 minutos com vitória sua. Em uma entrevista a um jornal local, Wong contou a luta em detalhes e encerrou dizendo que poderiam fazer uma luta pública se Lee achasse a sua versão inaceitável. Bruce jamais deu uma resposta.
Anos depois, Wong disse estar arrependido de ter aceitado o desafio de Lee, atribuindo isso a arrogância de ambos.
Esse é o tipo de polêmica que enriquece uma lenda e que poderia ter sido explorada em A Origem. O que é estranho, pois os roteiristas do filme, a dupla Christopher Wilkinson e Stephen J. Rivele, são especialistas em escrever sobre as vidas de grandes personalidades como, por exemplo em Nixon (1995, no qual foram indicados ao Oscar) e Ali (2001). Mas, o roteiro fica no lugar comum, mais para um filme de aventuras do que um biográfico.
Em seu segundo trabalho como diretor (o primeiro foi Agentes do Destino, em 2011), o produtor e roteirista George Nolfi (O Ultimato Bourne) apresenta um trabalho correto na direção, sobressaindo-se nas cenas de luta, principalmente na de Lee e Wong, mas não se sai muito bem em cenas de humor - no que contribuiu a falta de jeito para comédia de Magnussen aliado ao roteiro chocho de Wilkinson e Rivele. Porém, graças à bonita fotografia do iraniano Amir Mokri (Transformers: A Era da Extinção), consegue mostrar toda a beleza de San Francisco.
A trilha sonora composta a duas cabeças e quatro mãos pelo inglês Reza Safinia (A Sacada) e pelo estadunidense H. Scott Salinas (O Extermínio do Marfim) não chega a ser memorável, mas consegue dar o clima certo ao um típico filme de Kung Fu.
Jingjing Qu é bonita e dá para perceber que é boa atriz, mas, infelizmente, foi escalada para o ingrato papel de mocinha indefesa e interesse amoroso de Billy Magnussen, que ainda precisa provar se realmente merece a apostas que fazem nele...
Philip Ng é ainda muito pouco conhecido no Ocidente, mas já tem uma carreira de quase 15 anos na indústria de cinema de Hong Kong e quer fazer de A Origem, seu cartão de visitas para Hollywood. Como ator, não é melhor nem pior do que a maioria dos astros de ação, seja do Ocidente ou do Oriente, mas é bom lutador e, portanto, pode conseguir o seu espaço na América.
Xia Yu também tem uma longa carreira na China - 23 anos - e é o principal motivo para se ver A Origem do Dragão. Além de ser um grande artista marcial, é também um ator muito bom. Em 1994, conquistou o prêmio de Melhor Ator no prestigioso Festival de Veneza com o filme In The Heat of The Sun, ainda inédito no Brasil. A sua interpretação de Wong Jack Man dá um caráter sereno e nobre ao personagem em contraste com o arrogante e bruto Bruce Lee e isso faz com que, apesar da popularidade de Bruce, Wong se torne o verdadeiro herói do filme.
O outro motivo para assistir A Origem do Dragão é justamente o seu principal tema: a luta entre Bruce Lee e Wong Jack Man. Podem dizer o que quiserem sobre filmes de Kung Fu, mas a grande verdade é que os artistas marciais de Hong Kong são capazes de movimentos e coreografias que nenhum dublê de Hollywood consegue reproduzir, por mais que tente. A luta é, de fato, espetacular, mas é pena que aconteça tão cedo ao invés de ser no grande final. Ao invés disso, foi colocada uma cena de luta de Bruce e Wong contra a máfia chinesa que raptou Xiulan - uma outra imprecisão histórica do filme.
A Origem do Dragão é impreciso historicamente? É. Tem falhas? Tem. Vale a pena assistir? Se você não for muito exigente e é daqueles que curte uma boa luta de Kung Fu, a resposta é: sim. Devido a isso e da história ser uma das várias lendas que cercam o imortal e fascinante Bruce Lee, é que fazem o filme se tornar uma boa diversão neste período de verão e de férias escolares no Brasil.