A Origem, de Christopher Nolan e Ilha do Medo, de Martin Scorsese, ambos lançados em 2010, e coincidentemente protagonizados por Leonardo Di Caprio, têm algo mais em comum, a complexidade narrativa. O primeiro subverte a realidade e distorce a gravidade com sonhos dentro de sonhos de alguém que talvez também esteja sonhando, enquanto que o segundo conta uma história investigativa que, ao final, percebemos estar se passando em um lugar diferente do que imaginávamos, comprometendo drasticamente o destino do protagonista. Estas são apenas duas entre tantas obras cinematográficas que, de uma forma ou de outra, remetem a um dos maiores expoentes do expressionismo alemão, um filme mudo lançado em 1920, considerado por muitos como o primeiro grande longa-metragem de terror da história do cinema, e dotado de uma composição visual gótica e bizarra, além de um roteiro surpreendente e arrebatador, com direito a reviravolta no final. Trata-se de O Gabinete do Dr. Caligari.
O intrigante roteiro escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer nos leva a conhecer Francis (Friedrich Feher) que, sentado em uma praça, começa a contar para seu colega ao lado a história que o trouxe até ali. Acompanhamos, então, em um longo flashback (que compreende a maior parte da narrativa), o surgimento de um novo ilusionista na cidade, o Dr. Caligari (Werner Krauss), e seu assistente, o sorumbático Cesare (Conrad Veidt), sonâmbulo na maior parte do tempo e que, quando acordado, teria a habilidade de prever o futuro. Quando um amigo de Francis pede a Cesare que lhe diga até quando vai viver, este responde: “Só até o amanhecer!”, para desespero do rapaz, que não pensou nas consequências da resposta à sua pergunta tão específica. A ‘profecia’ se cumpre. Há também outros assassinatos e a tentativa de mais um, provocando o terror naquela comunidade. A moça que sobreviveu ao ataque, Jane (Lil Dagover), a amada de Francis, identifica Cesare como seu algoz, o que leva todos a acreditarem que Caligari seja o mentor das mortes. Voltando do flashback, quando Francis termina seu relato, no ato final do filme, é revelado onde ele de fato está, qual a identidade real de Caligari e, por fim, qual é a verdadeira história.
Absurdamente inovador, este filme deu um salto enorme na construção de roteiros, abrindo o leque para inúmeras possibilidades, que não precisariam se prender à cronologia, nem à ‘veracidade’ dos fatos narrados. Contemporâneo do expressionismo alemão, o gênero conhecido como film noir, que seria muito popular no cinema norte-americano dos anos 1930 aos 50, também explorou vastamente as narrativas entrecortadas, idas e vindas no tempo, cenas filmadas por vários pontos de vista, implementando novos conceitos à linguagem cinematográfica, então em plena evolução. Foi o caso do divisor de águas Cidadão Kane, de Orson Welles, de 1941 e, 15 anos depois, de O Grande Golpe, dirigido por um cineasta novato, um tal de Stanley Kubrick. E na virada para os anos 2000, o mundo ficou pasmo com um filme que fez um imenso sucesso ao trazer uma inesperada e chocante surpresa em seu final, O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan que, por sua vez, deu início a uma nova onda de ‘filmes com reviravolta’, presentes até hoje, principalmente nos gêneros de suspense e terror. Neste quesito, Caligari foi pioneiro.
Outro item de igual importância na consumação da aura em torno desta obra-prima ao longo dos anos é em relação a seu aspecto visual. Alguns cenários e figurinos deste longa em P&B imediatamente nos trazem à memória cenas de filmes realizados pelo mais ‘expressionista’ dos diretores atuais, o gótico Tim Burton. Toda a ambientação claustrofóbica e apavorante, com a geometria quebrada das portas, janelas e paredes (e até os intertítulos que preenchem a tela) deste filme mudo encontram paralelos no curta animado Vincent, que Burton realizou em 1982 e, 30 anos depois, no seu longa animado Frankenweenie. A caracterização do Dr. Caligari é quase idêntica ao Pinguim idealizado por Burton e vivido por Danny De Vito em Batman – O Retorno (1992). E nem é preciso dizer que a predominância do preto nas vestimentas, bem como a palidez propositalmente exagerada dos personagens e o uso inteligente de luzes e sombras que criam ambientações surreais e aterrorizantes, além de serem marcas do expressionismo alemão, muitos anos depois passariam a ser, também, sinônimo de Tim Burton. Há ainda inúmeras outras referências deste filme quase secular espalhadas por diversas obras que permeiam a cultura Pop, de HQs e desenhos animados a séries e filmes, passando por comerciais de TV e videoclipes. Os cenários em P&B sem nenhuma concordância geométrica ou gravitacional de Sin City (2005) de Robert Rodriguez, bem como a fotografia estilizada de quase todos os filmes do também mexicano Guillermo Del Toro, são outros belos exemplos de obras que beberam na fonte de Caligari e do expressionismo alemão.
Na década de 1920, a Alemanha pós Primeira Guerra Mundial tentava se reconstruir, e o sentimento da nação se refletia em seu cinema, por meio de obras pessimistas, distópicas, sombrias e sem finais felizes. Os realizadores alemães não tinham como prever, mas o pior ainda estava por vir, com a Segunda Guerra Mundial. A exemplo de muitos outros cineastas que trabalhavam na Alemanha na época, Robert Wiene (que dirigiu vários filmes, mas nenhum tão icônico quanto Caligari) deixou o país nos anos 1930, quando a nação já estava mergulhada no nazismo, e a produção cinematográfica se restringia à propagação das ideias de Hitler, o que sepultou qualquer tentativa de continuar a se fazer cinema autoral por lá, além, é claro, da perseguição às obras já feitas e aos seus realizadores. Contudo, cópias das principais obras do expressionismo alemão foram espalhadas pelo mundo e, assim, sobreviveram e aí estão, continuando a inspirar muitos profissionais do cinema e de outras mídias a criarem, ou recontarem, histórias recheadas por caprichos visuais formidáveis. O legado deixado especificamente por O Gabinete do Dr. Caligari é incontestável. Seu roteiro complexo, somado ao seu visual desconcertante lhe garantem um confortável lugar na galeria dos maiores filmes da história do cinema.