É tudo mentira
por Bruno CarmeloVicente (Lázaro Ramos) é um “vendedor de passados”. Este curioso profissional trabalha em sua casa, com a ajuda de fotografias antigas e computadores com programas de edição de imagens. Assim, ele corrige os passados de pessoas tristes e frustradas, montando novos álbuns de nascimento, de casamento, produzindo falsos vídeos sobre belas amizades e viagens inesquecíveis que seus clientes nunca tiveram.
Essa premissa é interessantíssima, e imagina-se o que um escritor como José Saramago, amante dos absurdos, poderia fazer com as consequências sociais e psicológicas deste curioso trabalho. Mas O Vendedor de Passados, baseado na obra do angolano José Eduardo Agualusa, torna a profissão incerta: existem outros vendedores de passado além de Vicente? O que as pessoas realmente fazem com estes falsos álbuns de fotos? A atividade é ilegal? Como Vicente entrou neste ramo? Não se sabe.
Esta talvez seja a maior dificuldade para o espectador: empolgar-se com uma profissão que nunca se justifica. Mesmo assim, para quem superar este obstáculo inicial, o filme fornece suas recompensas. A primeira delas é a interessante discussão sobre uma espécie de infelicidade crônica contemporânea, e sobre a necessidade de sobrepor a representação à essência. O vendedor não deixa de ser um artista: quando Vicente apresenta à cliente Clara (Alinne Moraes) o vídeo fictício de seu novo passado, torna-se cineasta, inventor de personagens. Essa estranha atividade profissional funciona como uma metáfora da própria criação artística e cinematográfica.
Esses questionamentos, entretanto, não constituem o foco principal da narrativa. O Vendedor de Passados é uma obra indecisa entre o drama, o romance, o suspense e a comédia. Ora a busca de Vicente pelo verdadeiro passado da misteriosa Clara leva a história para rumos sombrios, próximos do suspense, ora cenas patéticas como o jantar com um amigo (Odilon Wagner) adotam o caminho da farsa cômica. A trama ameaça traçar uma crítica aos tempos da ditadura, mas os pouquíssimos personagens em tela nunca parecem viver em sociedade, nunca encontram outras pessoas, nunca saem de casa, de modo que o discurso político se dilui por não encontrar correspondente nas imagens.
Aos poucos, esta se revela uma obra marcada por reviravoltas que pretendem surpreender o espectador e transformar o rumo da narrativa. A atuação sisuda de Alinne Moraes e a presença afável de Lázaro Ramos contribuem para deixar as relações vagas: quem realmente são estes dois? Eles estão contando a verdade sobre si, sobre seus passados? A partir do momento em que todos podem reconstruir as suas histórias, de que adianta a verdade? O filme transforma-se numa discussão sobre a veracidade histórica, sobre o aspecto subjetivo de toda representação, e sobre o caráter potencialmente mentiroso de Vicente, de Clara e do próprio filme.
Talvez O Vendedor de Passados se perca na ambição pueril de ser mais inteligente que seu espectador, de estar sempre um passo à frente. Se permitisse aos personagens explorarem todas as consequências dos novos passados, poderia ir muito longe. O resultado final é algo intermediário entre uma boa ambição discursiva e uma realização pouco expressiva de Lula Buarque de Hollanda, que se contenta em planos fechados, uso frágil dos espaços e das elipses. Uma premissa excepcional como esta mereceria maior ousadia estética e narrativa, mas o resultado final não deixa de ser agradável.
Filme visto no 19º Cine PE Festival Audiovisual, em maio de 2015.