Assistir ao clássico Jesus de Nazaré numa época eivada de novelas bíblicas e fenômenos religiosos “fabricados” pode ser considerado como um verdadeiro gesto de resistência. O épico bíblico envelheceu bem e, quase quarenta anos depois, nestes nossos tempos confusos e difíceis, ele permanece como uma obra de grande estatura e beleza.
Registre-se, o cinema mundial sempre foi pródigo em levar Jesus Cristo para a tela grande. No entanto, a mais popular – e feliz – versão dos Evangelhos foi feita para a televisão.
Originalmente concebido em seis episódios – com um total de mais de seis horas de duração –, Jesus de Nazaré é muito conhecido aqui no Brasil por ser transmitido há anos na TV, nos feriados religiosos. Talvez por conta de tamanha popularidade, o “seriado” é constantemente editado e dilapidado, o que dificulta assisti-lo na versão integral.
Vencido esse obstáculo, vemos que o diretor florentino Franco Zeffirelli (1923-) – de Romeu e Julieta (1968) – retrata a vida de Jesus (Robert Powell) com megalomania, mas com devoção. Aliás, a devoção do diretor é tamanha, que ele até opta em mostrar as intervenções divinas com o olhar oblíquo da sutileza.
Para ele, pelo menos como cineasta, a história de Cristo é praticamente tão grande quanto seus ensinamentos e sermões. A biografia de Jesus é, por si só, uma belíssima história com alto potencial dramático, e é essa convicção que Zeffirelli deixa transparecer em cada fala, em cada cena, em cada enquadramento.
Ele trabalha com sensibilidade e sobriedade. Ele evita armadilhas comuns de se ver em qualquer filme religioso já feito. Zeffirelli evita o melodrama, evita os pretensos “revisionismos históricos” que denunciam a intrusão do ego do artista – versões pessoais, provocações polêmicas, desconstruções, acréscimos duvidosos, etc. –, e evita também a panfletagem religiosa.
Em outras palavras, Zeffirelli abdica da “autoralidade”, ou deixa-a pouco evidente, nas entrelinhas. E esse é um gesto interessante, visto que os anos 1970 estavam obstinados em reinventar a fé, a religião, o Cristo.
Com essa perspectiva, Jesus de Nazaré ergue-se como uma obra ecumênica – e por que não dizer demagógica? Há a nítida preocupação em agradar todo mundo, principalmente a massa heterogênea e difusa dos religiosos cristãos, de não ferir a fé de ninguém. Ainda que os traços de Jesus tivessem escancarada inspiração nas iconografias católicas – o que era de se esperar de um filme italiano.
Zeffirelli quer apenas contar a história, com lirismo, plasticidade e grandiosidade. Eu gosto quando ele dá importância devida ao período histórico que foi a Palestina no início da Era Cristã, sob o domínio do todo-poderoso Império Romano. Eu gosto quando ele dá luz à humanidade e à plausibilidade dos sentimentos das personagens.
E Zeffirelli é realmente obcecado com os detalhes. Jesus de Nazaré é filmado em cidades históricas de Marrocos, Tunísia e Turquia. O que torna cada cena uma verdadeira exuberância visual particular. E é interessante constatar que há pouquíssimos “artifícios” narrativos, de câmera e de edição, no filme, o que reforça a “teatralidade”, reforça a mise-en-scène. A narrativa é convencional, a câmera também. Há quase um “apagamento” do diretor, sua preocupação é uma apenas: que o espectador – religioso ou não – tenha a ilusão de que tudo realmente está se desenrolando diante dos seus olhos.
Para ele, a força do filme está, não só no protagonista retratado, mas na construção do roteiro e na expressividade dos atores.
Por essa razão, a superprodução traz os maiores atores e atrizes do seu tempo, em desempenhos espetaculares. Nós temos Anthony Quinn (1915-2001), Laurence Olivier (1907-1989), Christopher Plummer (1929-), Ernest Borgnine (1917-2012), Anne Bancroft (1931-2005), Claudia Cardinale (1938-), dentre tantos outros. Curiosamente, o papel de Jesus é dado a um quase desconhecido à época, o experiente ator de teatro Robert Powell (1944-), que no filme está brilhante.
Para elaborar o roteiro, Zeffirelli pediu ajuda ao famoso romancista britânico Anthony Burgess (1917-1993, estudioso de Joyce e autor de Laranja Mecânica) e à roteirista italiana Suso Cecchi D’Amico (1914-2010, colaboradora de Monicelli, Visconti, Sica, Antonioni e do próprio Zeffirelli).
Mas o Jesus interpretado por Powell tem fortes contornos humanos. Ele não é retratado com a insegurança cândida do Cristo de Jesus Cristo Superstar (1973) nem com a rudeza “política” de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Em Jesus de Nazaré ele é retratado em “camadas”, ora como um místico, ora como um revolucionário; ora como uma figura passiva e calma, ora como alguém irascível e enérgico.
Talvez comparado com a “pornográfica” versão de Mel Gibson em A Paixão de Cristo (2004), a crucificação em Jesus de Nazaré pareça demasiadamente suave, asséptica, de contornos ingênuos, românticos. E é verdade. Zeffirelli aprendeu com o mestre Cecil B. DeMille (1881-1959), em suavizar e edulcorar cenas de violência, coisa que Gibson retrataria com morbidez e sensacionalismo.
De novo voltamos à reverência de Zeffirelli: ela o faz cometer alguns pecadilhos de verossimilhança e realismo, que na conjuntura geral da obra, são passáveis e perdoáveis.
Até porque Jesus de Nazaré é uma obra sincera. Poucas vezes vemos – em cinema ou televisão – um Jesus retratado com tanta paixão, devoção e arte. Neste filme, arte, religião e a preocupação “comercial” de fazer público são variáveis perfeitamente casadas e equacionadas por um cineasta que ainda acredita no artesanato da narrativa para atingir os seus intentos.
E assisti-lo hoje, uma época em que a bancada evangélica na Câmara tem influência para votar em projetos de lei que representam o retrocesso, apenas constata que Jesus de Zeffirelli continua uma figura retumbante – e suave – de libertação, de transcendência, mas, sobretudo, de amor.
E que a fé, quando ela quer, é ainda capaz de produzir verdadeiros clássicos!