“Carnaval em brasa na Fogueira da Chanchada ”
Ricardo Lens
O filme “Carnaval no Fogo” (1949) dirigido por Watson Macedo, protagonizado por Grande Otelo e Oscarito , Anselmo Duarte, Eliana Macedo, Adelaide Chioso, Elvira Pagã, entre outros, e com a estréia de Jece Valadão, Wilson Grey e José Lewgoy no cinema brasileiro, definiu a fórmula da era de ouro da chanchada no Brasil, no entanto, dois anos antes “Este Mundo é um Pandeiro”, (1947) marcaria o início dessa nova fase áurea desse negócio da China. Durante uma década, a companhia de cinema Atlântida, do Rio de Janeiro, foi a pioneira em utilizar uma temática carnavalesca, em forma de musicais, e dominou o gênero.
Bastiãozinho ganhou o nome artístico de Otelo, que o acompanharia ao longo da carreira. O apelido surgiu na Companhia Lírica Nacional, onde o garoto tomava aulas de canto lírico. Devido à sua voz de tenorino, o maestro julgou que um dia o menino cresceria e cantaria a ópera Otelo, de Giuseppe Verdi. Pela estatura pequena, o apelido inicial foi Pequeno Otelo. Mais tarde, a crítica carioca, através de Jardel Jércolis, o denominou Grande Otelo. No carnaval de 1942 o diretor Orson Welles elegeria Grande Otelo o maior ator da América do Sul, realizando diversas tomadas do artista.
Otelo servia de elo e pretexto para os diversos aspectos que o diretor norte americano desejava captar a respeito do carnaval e acabou por se tornar parte fundamental de seu documentário sobre América Latina, intitulado “It's All True”.
Oscarito e seu personagem (Serafim) com estilo informal , simples e bonito revela uma subjetividade que dialogava, com o gosto e a sensibilidade do público, burlescamente, em cena fantasiando ser, um maestro de uma grande orquestra de musica erudita. Uma lição antológica de direção muito bem costurada por Watson Macedo , no plano de abertura do filme , aderindo os fotogramas dessa cena sutilmente influente a toda extensão de conteúdo e forma pró fílmica, onde usando princípios mais teóricos do que materiais consegue um grandioso efeito , simultaneamente extraindo o máximo dos recursos tecnológicos, e gerando expectativa a trama principal do filme.
Anselmo Duarte (Ricardo) o diretor artístico do hotel que no futuro viria a ser o vencedor da (Palma de Ouro) na categoria Melhor Filme. Festival de Cannes 1962 (França) com o filme "O Pagador de Promessas" , e indicado a melhor filme estrangeiro do Oscar 1963 (EUA).
Eliana Macedo (Marina) nas cenas teste , ensaios artísticos de musica com dança, music-hall , percebe-se com clareza a influencia, dos trejeitos de Carmen Miranda , e o objetivo de encantar, e ser sensual, enquanto gesto estilizado de uma manifestação artística, primitiva do passado. Comovente a conduta humanitária da sua personagem ao pedir ao diretor do espetáculo (Ricardo) para que o personagem de Oscarito se apresente junto com os outros artistas.
A cena antológica de “Romeu e Julieta”, na qual Oscarito com sua expressão gaiata, e, Grande Otelo (empregado do hotel) lembrado pelo humor sagaz e ligeiro, mostra-se hábil nas suas interpretações, trabalhando a expressão corporal, a voz e os trejeitos. A voz fina, porém não feminina (tenorino) com a diferença real, no entanto, consistiu na tessitura, onde o artista é chamado para executar o canto silábico, com os melhores resultados sonoros. Evocando os áureos tempos do circo-teatro no Brasil, são dignos de aplausos. Ouso dizer, que provavelmente, Willian Shakespeare, sentiria prazer, em assistir, a cena parodiada, entre outras coisas, com um artista, dessa qualidade de extensão de voz . Só consegui ver o filme parcialmente ... pois estranhamente foi deletado da internet, e segundo, a crítica da época , o filme foi distribuído com cópias defeituosas (sic). E de fato a cópia que estava no youtube, onde eu o assisti , apresentava problemas no som: ruídos - do tipo “milho de pipoca estourando” (burst noise) mesmo assim decidi apresentar essa crítica parcial de um tema um tanto quanto polêmico como as chanchadas.
Sobre os arranjos musicais, sob a batuta competente de Lyrio Panicali. A mim pareceu, que as músicas de carnaval apresentadas no filme deveriam ter um andamento mais allegro (ligeiro e alegre) assim por dizer, alegre como o carnaval, e com menor duração do tempo dos compassos, no entanto, há quem diga que a chanchada cerceia o trabalho de liberdade de criação musical.
Acho que faltou, um espírito mais seletivo, artístico , no inter-relacionamento de algumas cenas do filme do ponto de vista da montagem, comprometendo a noção de mudança , desenvolvimento e dinâmica, isentando o roteiro em algumas cenas da tensão necessária, para gerar mais expectativa a trama de fundo.
A chanchada cujo significado etimológico refere-se à ideia de “porcaria”, “peça teatral ou filme de valor duvidoso”, “pornografia” – na verdade traduz uma visão de mundo carnavalesca, cômica, burlesca, bufa. Herdeira do teatro de revista da Praça Tiradentes.
Em termos bakhtinianos, trata-se de uma expressão cultural popular na qual predomina a linguagem da praça, do riso, do baixo corporal, enfim, do “realismo grotesco”que (no sistema de imagens da cultura cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. É um conjunto alegre e benfazejo. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral, e as pretensões de significação incondicional, intemporal e liberam, a consciência, o pensamento e a imaginação humanas, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa ‘carnavalização’ da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico. É exatamente esta visão carnavalizadora do mundo, que a chanchada promove, onde o malandro, o palhaço, o caipira e outros relativizam a ordem social de maneira crítica por meio do riso, da paródia, do deboche, da festa, das performances corporais etc.
Um tipo de filme extremamente popular, em que a reunião de tramas, amorosa, policial e comédia intercaladas, por números musicais levaram milhões de brasileiros ao cinema ao longo de 30 anos, das décadas de 30 aos anos 50, seu apogeu. Por que as chanchadas tiveram sucesso? Acredito que várias razões podem ser arroladas para explicar esta popularidade. Uma delas foi a forte identificação existente entre seus personagens e a maioria do público cinematográfico: as classes de média e baixa renda. Identificação facilitada pela linguagem pragmática utilizada nas chanchadas, onde se achavam presentes elementos do carnaval, do rádio e do teatro de revista. A música, principalmente, tinha um papel destacado nestes filmes, pois era o principal produto de nossa indústria cultural, bem ao qual tinha acesso grande parte da população via rádio, importante meio de comunicação de um Brasil pré-televisão. Outro fator que facilitou à chanchada obter grande popularidade foi o ingresso barato de cinema. O Brasil tinha em 1952 o sétimo ingresso mais baixo da América Latina, além de figurar entre os dez primeiros países quanto ao número de cinemas e ao total de espectadores, a cidade do Rio de Janeiro fechou a década de 50 com 300 salas.
Atualmente com 216 salas na cidade do Rio de Janeiro, uma proposta como meio de uma formulação de uma política de artes passaria pelos conceitos de ilustração da vida cotidiana da cidade , os processos de reprodução dos sons e das imagens em movimento e o acesso da percepção da diversidade das coletividades humanas e como se organizam. Mostrar as transformações e suas causas sociais. Salas com ajuda do Estado que se encarreguem de programar filmes escolhidos em uma lista estabelecida conforme os critérios:
- filmes que apresentem incontestáveis qualidades, mas não tem público ;
- filmes que tem um caráter de pesquisa e novidade ;
- filmes que fazem conhecer países com produção limitada ;
- curta-metragens que tenham um caráter de pesquisa ;
- mostra de filmes clássicos ;
As salas beneficiadas pelas vantagens concedidas pelo Estado : liberdade de preço da entrada, subvenção automática calculada por referência à taxa especial engendrada pelas receitas da sala.
A herança circense de Oscarito (Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz, 1906-1970), e Grande Otelo (Sebastião Bernardes de Souza Prata, 1915-1993) em suas atuações, icônicas, lhes rendeu a versatilidade e a sensibilidade necessárias para a construção de tipos e personagens de grande apelo popular.