São Paulo, sociedade anônima
por Bruno CarmeloA primeira impressão diante de um filme intitulado “Cores”, e realizado em preto e branco, é de estarmos diante de uma obra hermética, pretensiosa, como algumas do dito novíssimo cinema brasileiro (Mãe e Filha, Sudoeste etc.). Felizmente, o filme é mais acessível do que aparenta, ultrapassando a simples malícia do título. O preto e branco também poderia ter sido escolhido para ressaltar dois mundos radicalmente opostos, mas o que temos aqui é um conjunto bastante homogêneo de personagens e pontos de vista. Com pouco significado extraído do título, talvez seja melhor abandonar esta pista como porta de entrada para o filme – afinal, preto, branco e cinza também são cores...
Em seu retrato dos moradores de classe média e média-baixa, Cores retrata um certo tipo de malandragem paulistana. A lábia do gatuno carioca é substituída pela depressão e anonimato desses jovens moradores de São Paulo, que vivem de pequenos bicos, fumando, bebendo, roubando dinheiro, vendendo remédios ilegalmente. A garota mora ao lado do aeroporto e sonha em viajar, mas não tem dinheiro para isso. Os amigos tentam ir à praia no final de semana, mas o carro quebra e eles são obrigados a voltar. O roteiro impõe uma lógica pessimista à trinca de protagonistas, que se deslocam sem propósito e sem escapatória por um mundo de comunicação esparsa – como ilustra o símbolo do telefone da casa de Luca (Pedro di Pietro), que toca, toca, mas nunca é atendido durante toda a trama, ou ainda pela óbvia metáfora da tartaruga presa no quintal.
Enquanto os corpos deambulam e se contentam com os prazeres imediatos (fome, sede, nicotina, sexo), Cores executa um retrato naturalista, que sabe deixar seus personagens se expressarem com calma, dando tempo para os movimentos, para as hesitações. É muito bom encontrar diretores que sabem trabalhar o tempo, observando seus personagens com tranquilidade, evitando explorar o fetiche dos planos-sequência longuíssimos e vazios. Não é preciso ser entediante para retratar a vida de pessoas entediadas, e isto, o diretor Francisco Garcia entende muito bem.
A grande surpresa, no entanto, vem das escolhas estéticas que o diretor faz para sua história. Para retratar a limitação de perspectivas e ambições, Garcia opta por recursos técnicos preciosos, barrocos, que chamam atenção para si mesmos. A fotografia, um preto e branco belíssimo em textura digital, torna-se um personagem tão importante quanto os três protagonistas. Os figurinistas e cenaristas se deliciam com texturas, flores, motivos geométricos e caleidoscópicos, algo que o próprio diretor reproduz no plano aéreo, tão interessante quanto artificial, com os dois rapazes e a garota, deitados em sentidos opostos.
Neste caso, a beleza não nasce da natureza, do humano, mas do artifício, do enquadramento, do aparato cinematográfico. Contra a estética da miséria que o cinema brasileiro pregava nos anos 1960, novos filmes como Cores, Sudoeste e Mãe e Filha fazem da precariedade (urbana no primeiro caso, rural nos dois últimos) uma possibilidade de beleza. Este não é um cinema miserabilista, que explora a imagem do pobre, mas também está longe de ser um cinema social, engajado. A sociedade funciona menos como elemento de discurso do que como tema sobre o qual se aplicar uma estética polida e profissional.
O momento em que essa contradição se revela mais claramente é nos diálogos. Garcia sabe muito bem onde dispor seus corpos no plano, como fazê-los se mexer, como um bom escultor ou diretor fotográfico. No entanto, quando se comunicam verbalmente, o talentoso trio de atores se vê obrigado a repetir diálogos que pretendem condensar o significado de toda uma cena. Sucedem-se falas artificiais sobre a situação da sociedade, sobre a crise econômica, sobre a falta de perspectivas.
Exemplo: na televisão, o ex-presidente Lula faz um discurso a respeito da situação econômica favorável. Luca assiste à programação com ceticismo, deixando claro em suas expressões que sua vida não reflete a melhora apontada pelo governante. No entanto, algumas cenas mais tarde, o próprio Luca diz a Luara (Simone Iliescu) que aparentemente a economia anda em crise, ao que a amiga responde algo como “Mas eu ouvi dizer que melhorou. Não entendo dessas coisas, mas parece que melhorou”. Redundâncias deste tipo revelam um diretor e roteirista que parece não acreditar no significado de suas imagens, sentindo-se obrigado a explicar suas intenções através de falas um tanto mecânicas.
Apesar deste impasse entre naturalidade e artifício, Cores consegue desenvolver ações imorais (contra a moral) e amorais (sem moral) e se isentar de tomar partido. Seus personagens não são heróis, nem anti-heróis, e nesse sentido Luca, Luara e Luiz (Acauã Sol) tornam-se universais, maiores do que retratos de casos particulares. Eles não são especiais, e é justamente a sua banalidade que os torna tão verossímeis. É uma pena que, de vez em quando, seus diálogos o transformem em marionetes de um pequeno discurso social nunca plenamente desenvolvido. Mas isso não estraga a sensação bem construída de impotência dos personagens em relação ao contexto – no caso, mais geográfico do que social.