História oculta
por Francisco Russo“Tudo que pensamos ser verdade um dia muda”. A frase de abertura de Dossiê Jango provoca uma certa reflexão. Se por um lado a estrutura de um documentário define que, por regra, ele se baseie na realidade, por outro a mudança mencionada vem não propriamente da análise de determinada cena ou depoimento, mas por uma melhor compreensão do contexto envolvido. É este o grande alvo e também o principal mérito de Dossiê Jango: permitir que o espectador possa entender o complexo jogo político em vigor na década de 1960, que resultou não apenas no golpe militar como também no modo como a ditadura agiu nos primeiros anos de governo.
A figura central desta reconstrução de época é o ex-presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar em 1964. Vice-presidente de Jânio Quadros, eleito numa época em que havia votações diferentes para os dois cargos, Jango assumiu o governo em decorrência da renúncia do presidente, que planejava voltar ao poder com o apoio do povo. Não deu certo. Temido por boa parte dos políticos conservadores devido às ideias socialistas que possuía, como a implementação da reforma agrária, Jango apenas assumiu o governo após uma intensa negociação de bastidores que fez com que o Brasil, repentinamente, se tornasse parlamentarista. Entretanto, sua popularidade era uma ameaça aos Estados Unidos, que temiam que a América do Sul se tornasse comunista.
Um dos alvos iniciais do novo documentário do diretor Paulo Henrique Fontenelle (o mesmo do excelente Loki, Arnaldo Baptista) é desmontar certas acusações históricas contra João Goulart, como a que seria comunista. Entretanto, a maior preciosidade entre o material de arquivo coletado vem justamente da participação dos Estados Unidos na derrubada de Jango. Gravações em áudio do embaixador Lincoln Gordon e até mesmo do ex-presidente americano John Fitzgerald Kennedy comprovam a preocupação americana com o momento político do país, enquanto que o também ex-presidente Lyndon Johnson revela que seria possível agir no Brasil da mesma forma como foi feito no Panamá. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Se a primeira metade de Dossiê Jango dá ao filme uma sustentação histórica bastante vigorosa, a partir de imagens de época e depoimentos relevantes, cabe ao restante do documentário assumir de vez o tom investigativo sobre se João Goulart teria realmente morrido de causas naturais. Por mais que nenhuma prova do contrário seja apresentada, os indícios são esclarecedores sobre o quanto Jango, mesmo morto, incomodava o regime vigente.
Dossiê Jango é um filme necessário para todos aqueles que desejam entender melhor o porquê do Brasil ser do jeito que é hoje. Trata-se de um relato consistente e abrangente sobre a turbulência política vivenciada pelo país na década de 1960 e o quão crucial foi a influência estrangeira para que o golpe militar realmente acontecesse e perdurasse por tantos anos. É, ao mesmo tempo, uma grande provocação ao governo, no sentido de abrir o baú de segredos acerca do período da ditadura militar. Bom filme.