Entre a fantasia e a vida real
por Francisco RussoPor mais que volta e meia o diretor José Eduardo Belmonte invista em um cinema visando um público maior, como são os casos de Billi Pig e Alemão, é em seus menores trabalhos que costuma se sair melhor. Menor no sentido de orçamento, é importante ressaltar, já que são filmes repletos de simbolismos e nuances que revelam personagens pra lá de interessantes. É o caso de O Gorila, drama exibido (e premiado) no Festival do Rio de 2002 que apenas chega ao circuito comercial três anos depois.
A bem da verdade, trata-se de um filme cujo personagem principal é melhor do que a trama em si, algo que já aconteceu em outro longa do diretor, A Concepção. O Gorila do título é Afrânio, um recluso dublador solitário que alcançou uma certa fama ao ser a voz de um personagem de TV cultuado, o detetive McCoy. Entretanto, mesmo esta conquista ele foi obrigado a abandonar, devido a um dos vários mistérios em torno de sua vida. Este suspense é o grande condutor do longa-metragem, que, em busca de respostas, leva o espectador tanto pelos flashbacks emocionais de Afrânio quanto pelas ligações sedutoras de seu alter-ego, o Gorila. O livre trânsito entre a fantasia e a vida real, e as interferências de uma na outra, trazem ao personagem uma complexidade psicológica intrigante.
Há ainda dois fatores que auxiliam bastante no fascínio em torno do personagem principal: a interpretação de Otávio Müller, com tons de voz bem distintos para cada alter-ego, e a opção em incitar o erótico sem jamais chegar ao explícito, nas ligações telefônicas. Há sempre a impressão de que há algo mais a vir, numa espécie de coito interrompido que, também, faz parte do jogo de sedução encampado pelo Gorila junto aos seus alvos. É através destas ligações que o filme também assume de forma escancarada o tom de fantasia, não apenas pela conversa em si mas pelo modo como é encarada por certos personagens em sua vida real. A conta do choque destes dois mundos é cobrada quando a identidade secreta do Gorila é descoberta, levando Afrânio a uma espiral de paranoia rumo à colisão de suas duas facetas.
É nesta crise pessoal que O Gorila perde sua força. Assim como acontece no já citado A Concepção, Belmonte demonstra qualidades ao situar personagens emblemáticos mas não alcança o mesmo sucesso ao desenvolvê-los na narrativa. Por mais que a fragilidade de Afrânio/Gorila venha à tona, exigindo um aprofundamento ainda maior no relacionamento com todos que o cercam, esta mesma confusão entre vida real e fantasia acaba minando o que o filme traz de melhor, que é justamente esta dualidade existente em uma mesma pessoa. A trama envolvendo uma suposta morte é também um tanto quanto confusa, obrigando o diretor a fazer uso de um epílogo para "consertar" certas pontas soltas do roteiro.
Apesar dos problemas de estrutura na metade final, ainda assim O Gorila é um filme bastante interessante. Em parte pelo desempenho de Otávio Müller, em um de seus melhores trabalhos no cinema, em parte pela própria construção da história, com Belmonte explorando bem a iluminação e o jogo de sombras para criar um clima de suspense em torno de seu personagem principal. Chama a atenção também o fato de que, por mais que explore a sensualidade de seu elenco feminino (Mariana Ximenes, Alessandra Negrini, Luíza Mariani), o diretor jamais apela para a nudez, mantendo visualmente a linha tênue entre o erótico e o explícito que tão bem encaixa com o perfil do próprio personagem.