A jornada erótica de Santo Antônio
por Bruno CarmeloUm observador de pássaros faz anotações sobre a fauna numa floresta portuguesa. Enquanto olha, os animais observam-no de volta. Ele encontra duas garotas chinesas, católicas, que acreditam estar na Espanha para percorrer o caminho de Santiago de Compostela. Depois, sofre uma série de rituais envolvendo corpos amarrados, seres folclóricos, animais empalhados, amazonas sanguinárias e garotos surdos gays perdidos na praia. Seguem momentos de teor fúnebre e erótico, sagrado e profano. O Ornitólogo é um filme religioso gay, ou talvez um retrato erótico da vida dos santos.
O autor de tamanha ousadia é o diretor João Pedro Rodrigues que, apesar da descrição acima, não possui nenhuma intenção de chocar. Suas imagens são naturalistas e contemplativas. O protagonista Fernando (Paul Hamy) apresenta uma composição minimalista, sendo cercado por figuras voluntariamente farsescas. As chinesas riem de modo exagerado, os monstros folclóricos não provocam medo, o garoto surdo emite sons próximos dos gritos animais. Assim, o ornitólogo funciona como o protótipo do “homem comum” inserido num universo fantástico, espécie de pesadelo de fundo religioso – um misto bucólico das provações do inferno com o cenário natural que se imaginaria no paraíso.
Este não é um filme sem sentido, como argumentaram alguns espectadores durante a sessão. Pelo contrário, ele possui sentidos até demais. Algumas referências são claras: a exemplo da escritura religiosa, o jovem batizado Fernando torna-se Santo Antônio, que encontra seu caminho em Pádua. O garoto chamado Jesus (Xelo Cagiao) morre e depois ressuscita com o nome de Tomé – sendo que São Tomé é considerado por teólogos como possível filho de Jesus, com um nome que significa “gêmeo”. Ambos são interpretados pelo mesmo ator. Uma análise detalhada da Bíblia certamente indicaria outros níveis de leitura, mas esta bagagem não é indispensável ao projeto em busca de estranhamento.
A ascensão religiosa do santo não vai de encontro com o conservadorismo, pelo contrário. Fernando, descrito no início da trama como gay e ateu, leva uma vida regrada com o namorado, que controla seus passos por mensagens no telefone celular. Aos poucos, o personagem urbano se livra dos apetrechos e experimenta rituais pagãos, faz sexo com Jesus, bebe o sangue de uma ferida mortal e recebe a urina de um monstro. A grande presa, nesta natureza selvagem, é o protagonista, constantemente preso e sabotado pelo ambiente ao redor. Mas isso não o amedronta: o protagonista demonstra prazer em passar jornada libertária – vide os importantes remédios, dispensados pelo pesquisador.
O Ornitólogo seria, portanto, a jornada de descoberta sexual e religiosa de um homem, inspirado na figura de Santo Antônio de Pádua. O filme propõe a conjunção harmoniosa entre o cristianismo e a homossexualidade, ambos condizentes com a morbidez e perversão nas relações afetivas. O diretor desenvolve a estranha obra através do ritmo coeso, ótimos enquadramentos em scope e potente trilha sonora dissonante. Algumas metáforas visuais são excelentes, como os planos subjetivos dos pássaros observando o humano ou a floresta repleta de animais estáticos.
O resultado pode ser acusado de hermético e frio: é difícil torcer pelo protagonista, ou se identificar com ele. No entanto, revela-se instigante no que diz respeito ao uso de signos realistas em termos estéticos e fantasiosos em termos narrativos. Neste mundo caótico, o êxtase religioso, o prazer sexual e a pulsão de morte vivem lado a lado.
Filme visto no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2016.