Batman rejuvenesce melancólico e implacável
por Aline PereiraAcertos e controvérsias caminham lado a lado quando falamos de lançamentos da DC nos cinemas, e esta dúvida constante colocou um peso a mais para o novo Batman. A última versão do herói, com Ben Affleck, não agradou e a escalação de Robert Pattinson, desde o anúncio, abriu uma discussão precipitada e sem fim sobre o que o ator seria capaz de fazer. Um ponto central, claro, mas há muito mais o que discutir sobre a nova versão melancólica e engenhosa de Bruce Wayne.
Com direção de Matt Reeves (Planeta dos Macacos: A Guerra), Batman de 2022 traz o herói na busca pelo Charada (Paul Dano), criminoso que vem dizimando figuras notáveis de Gotham e que parece ter uma questão particular para resolver com o vigilante. Em paralelo à investigação oficial das autoridades, Bruce Wayne explora conexões no submundo da cidade que revelam a sujeira da corrupção e de uma rede terrível de influências.
Já se passaram quase 60 anos desde que Batman apareceu nas telas pela primeira vez e, uma dezena de filmes depois, escolher como e qual história contar é um desafio para qualquer um que assuma o projeto. Matt Reeves escolheu um caminho interessante: temos um Bruce Wayne vivendo uma fase de transição entre suas origens e a virada que o fez assumir completamente o manto de Batman.
A aparência jovem de Pattinson posiciona o herói em uma passagem importante de sua vida e que permite um mergulho emocional a partir do amadurecimento, um viés que apareceu pouco com intérpretes mais velhos.
Este Bruce Wayne carrega a memória de sua tragédia familiar de forma muito vívida - é claro que este é um fator determinante para todas as versões mais dramáticas do Batman, mas aqui é como se acompanhássemos o personagem ainda em uma espécie de luto e entendendo como continuar a sobreviver.
Temos não apenas um herói sisudo, mas com um sofrimento muito latente. A vulnerabilidade (que nada tem a ver com fraqueza) fica visível e essa exposição torna mais natural a compreensão de todos os relacionamentos que Bruce tem - com a Mulher-Gato (Zoë Kravitz), Alfred (Andy Serkis), Gordon (Jeffrey Wright) e, especialmente, com seu antagonista.
Contando sobre o desenvolvimento do filme, Matt Reeves deixou claro que a intenção era direcioná-lo muito mais para um gênero de investigação policial e detetive do que para uma “ação estilo James Bond” (foi como o cineasta definiu o roteiro que havia recebido antes e recusou). A escolha do Charada, portanto, faz sentido.
Ao contrário do exibicionismo caótico do Coringa, por exemplo, temos um personagem metódico, distante e que tem uma estratégia diferente para uma agenda tão política quanto pessoal - ambientado em um presente mais real, o vilão usa a internet e o que se esconde nela como arma. Esta combinação de características o liga muito a Bruce Wayne, e isso é ótimo, porque faz com que os dois personagens andem sempre muito próximos.
A história fica mais tensa e realista (dentro de suas possibilidades, claro) quando vilão e herói parecem ser dois lados distorcidos da mesma moeda, quando têm pontos em comum em suas trajetórias e o que os diferencia é o caminho que escolhem. Em algum nível, um entende o outro, o que só faz alimentar o ódio e a necessidade do confronto.
A escolha de Paul Dano para o papel é de se questionar, porque é difícil encontrar uma característica muito marcante que nos conecte a ele. Não é que o trabalho seja ruim, mas já passamos por uma longa lista de vilões do Batman no cinema e é fácil se lembrar da maioria deles, feito que talvez não role para o ator de Pequena Miss Sunshine, especialmente se considerarmos que ele divide a tela com Colin Farrell transformado em Pinguim. Este, sim, difícil de esquecer - para o bem ou para o mal.
O filme de 2022 dá um viés original e surpreendente à história da Mulher-Gato, que ganha um reforço com o ar enigmático e blasè de Zoë Kravitz. A nova Selina Kyle, que vimos no cinema pela última vez com Anne Hathaway, se afasta do tipo confiante e destemido que vem à mente quando pensamos na personagem, mas é quem chega mais perto de parecer uma pessoa real.
Matt Reeves dá a ela uma história própria, com motivações simples de compreender e inquestionáveis - não há muito mistério quanto a esta Mulher-Gato. Mais do que uma “peça” para interagir com Bruce, Selina está intimamente ligada a todo o enredo e tem participação fundamental na resolução do conflito e no amadurecimento pelo qual o herói passa ao longo da história. Como era de esperar, não vemos a história dela em detalhes, mas os pontos escolhidos para dar uma ideia geral funcionam - e se for permitido um palpite aqui: dificilmente ela irá embora tão cedo.
A química entre Robert Pattinson e Zoë Kravitz também virou assunto durante a produção do filme: a dupla entregaria a clássica tensão de gato-e-rato entre os personagens? Sim, mas talvez não tanto pela dinâmica entre os atores, mas pela construção dos personagens no roteiro. Assim como a nova versão de Bruce Wayne, a nova Selina também combina a determinação implacável com uma vulnerabilidade clara, uma agilidade fria e triste que vem mais de sua vida trágica e de grandes reviravoltas do que de interesses próprios.
Depois de Crepúsculo e, provavelmente pela repercussão da franquia, Robert Pattinson recalculou a rota completamente e construiu uma carreira de produções artísticas e independentes. Com o nome fora do radar do grande público durante muito tempo, é de se compreender que muita gente o avalie por seu trabalho mais famoso, mas é hora de superar: ele não fica atrás da maioria de seus colegas do universo dos heróis no cinema e traz particularidades que se encaixam na visão de seu diretor.
Quando foi escalado como o vampiro Edward da saga adolescente, há 15 anos, o ar melancólico de Robert Pattinson foi destacado pelo produtor envolvido na escolha do elenco. Não há palavras melhores para defini-lo até hoje e é justamente aí que as opiniões podem se dividir. Não é difícil entender que o jeito distante dificulte a simpatia pelo ator, como “pessoa física”, e por seus personagens - o que abre espaço para uma percepção e interpretação muito subjetivas.
Pattinson cumpre à risca o que Matt Reeves queria e esperava de seu novo protagonista ao escolher o início da "carreira" de Bruce Wayne como Batman. É uma versão menos enérgica do personagem, mas talvez justamente essa certa apatia torne mais humano o Batman de Robert Pattinson. Faz completo sentido que as experiências traumáticas que ele viveu, a reclusão e a pouquíssima habilidade social tenham tornado Bruce Wayne tão introspectivo - e triste.
Vale notar que não falta pancadaria em cenas muito gráficas, obscuras e que trazem o clima do gênero de terror, com uma violência que vem, acima de tudo, dessa escuridão e do espírito de vingança que há dentro dele e que é quase incontrolável. A história do novo filme é profundamente pessoal para Bruce Wayne e definitiva para a pessoa que ele está a caminho de se tornar. Tamanha transformação só é possível quando as estruturas internas estão desorganizadas - e as peças, enfim, se encaixam.