Uma lei básica do cinema: livro é livre, filme é filme. Quando alguém adapta alguma obra literária para as grandes telas, é necessário que quem esteja comandando a adaptação tenha plena ciência de que quem for ver a produção possa entendê-la por completo sem ter lido uma página sequer do livro. Essa regra talvez tenha sido esquecida pelos responsáveis das versões cinematográficas do livro da escritora E.L. James, que, curiosamente, está envolvida diretamente (mais diretamente impossível, creio eu) com está sequência do sucesso de bilheteria (mas fracasso absoluto de critica) de 2015 – merecidamente agraciado com um Framboesa de Ouro de pior filme. Lamentavelmente, as coisas não evoluíram muito desde o filme anterior. Problemas antigos e novos acometem a narrativa perdida desta produção, que só tem ousadia, polêmica e inovação em sua proposta – porque está bem longe de ter tudo isso. São tantos problemas que é até difícil saber por onde começar. Mas vamos lá.
Acredito que a maior falha de Cinquenta Tons de Cinza era a química inexistente entre o casal vivido por Dakota Johnson e Jamie Dornan – enquanto ela parece estar totalmente desconfortável em fazer o papel (e não só nas cenas de sexo), ele parece a definição precisa do que significa a palavra inexpressividade – o Christian Grey de Dornan tem a mesma reação tanto quando se declara para sua (supostamente) querida Anastasia, tanto na hora que está irritado com algo – ou seja, durante as duas horas de projeção deste Cinquenta Tons Mais Escuros, o ator não mudará absolutamente nada suas expressões faciais – e acredito que tanto ele quanto os produtores e o diretor acreditam que sua beleza e corpo trabalhado são suficientes para justificar a admiração que todas as mulheres do mundo parecem ter pelo sujeito – mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
Logo após os eventos do filme passado, Christian e Anastasia não estão mais juntos. Mas o ricaço sedutor não deixará assim – perseguindo e rastreando a moça, logo ele a convence a recomeçar o romance – depois de alguns buques de flores, um iphone novo e um macbook de presente – que ela refuga no começo, mas logo aceita, e não tem problema! Não há problema em demonstrar que uma mulher muda de comportamento por causa de alguns bens materiais mais caros – imagina! Nem é machismo por parte dos roteiristas isso, não é? – mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
Christian, desta vez, aceita se relacionar com Anastasia sem regras ou punições – ou seja, o Sr. Grey está se esforçando para ser alguém normal – alguém que possa fazer o mínimo de ser um homem que respeite sua companheira e que não exija dela total submissão – mesmo tentando justificar seu comportamento problemático devido um trauma de infância (pessimamente inserido em flashbacks, que quebram a narrativa mais ainda), já que agora evita usar suas “técnicas” de sadomasoquismo, algo que o diretor e a história de E.L James tentam retratar como algo muito difícil de Grey aceitar, porque, como sabemos, ele é viciado em sentir prazer fazendo suas parceiras sentirem dor – nada contra quem gosta disso, é claro, cada um tem prazer sexual da forma que achar melhor, mas será que Grey tem esse direito de forçar sua parceira com algo que ela parece não querer? Falo do sadomasoquismo, não do sexo - mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
Logo na primeira transa depois de se reconciliarem, já temos uma noção do total desastre que é a química entre Johnson e Dornan – junte a isso a falta de uma condução melhor de cena por parte do diretor e a inserção quase que cômica de música pop durante as cenas de sexo – numa obvia tentativa de “amenizar o clima”, ou seja, diminuir a censura do longa, que, se não fosse as cerca de meia dúzia de cenas de sexo simulado, poderia passar facilmente numa sessão da tarde – a ultima cena consegue ser um pouquinho mais ousada (de verdade), mas os dois atores parecem estar fazendo tudo nestes momentos, menos sexo, que acredito era bem melhor retratado nas produções softcore da Emmanuelle que o Cine Band Privé tanto exibia – é incrível até a qualidade baixa dos diálogos, muitas vezes sem o mínimo de espontaneidade, onde palavrões são inseridos aqui e ali de forma tão robótica que as vezes parece a mulher do google tradutor falando – talvez ela faça até melhor do que os atores. A tal primeira cena chega a ser ingênua: Christian apenas encosta o rosto nas partes intimas de Anastasia, que está de pé, insinuando um implausível sexo oral – que ela reage como se tivesse um orgasmo quase que instantâneo - mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
Não bastasse essa falta de coerência nas cenas intimas que deveriam ser o carro chefe do filme, para justificar toda a polemica que levanta, o resto do filme não deixa de ser um desastre parecido – seja na participação enfadonha e clichê de Kim Basinger, outrora protagonista de um dos maiores romances eróticos do cinema, Nove e Meia Semanas de Amor, manchando seu currículo ao interpretar de uma forma tão exagerada a mulher que teria ensinado Christian a entrar no mundo dos sadomasoquistas – sua participação rende diálogos como “você não é mulher para ele”, diz ela para Anastasia – ou “saia da minha casa”, mais tarde. Sem falar de ataques de nervosismo dignos de vilãs de novela das seis da globo – com direito até a levar copo de champagne na cara. E todas essas mulheres se submetem a isso, porque, segundo elas, vale muito a pena se humilhar tanto pelo Sr. Grey - mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
No final das contas, embora o roteiro tente dizer que Grey agora é um sujeito melhor, ele não deixa de fazer coisas que pessoas com mania de possessão fazem – seu relacionamento muitas vezes soa como um tipo de jogo mesmo, onde Anastasia é o prêmio. Sendo assim, ele vai comprar a editora na qual ela trabalha, para poder vigia-la melhor, já que (convenientemente) o roteiro retrata o chefe dela, Jack Hyde (Eric Johnson, talvez a melhor coisa do elenco), como um sujeito sujo e capaz de seduzir suas funcionarias – forçando a barra ao sugerir que Grey tinha razão em vigiar Anastasia no trabalho; Christian ainda forçará Anastasia a introduzir uma bola de metal na vagina e andar com isso, para estimular o prazer da parceira – como disse antes, cada um sente prazer da forma que achar melhor, mas será que era isso que ela realmente queria? Sentir prazer andando em qualquer lugar, seja num elevador ou um restaurante; afinal, Anastasia não é a protagonista de Ninfomaniaca, pois não sugere ser uma viciada em sexo – mas essa é apenas uma de inúmeras contradições do roteiro – criando momentos apenas para tentar causar um certo suspense (que foi sugerido nos trailers, mas não existe no filme), envolvendo acidentes ou pessoas perseguindo o casal – como a Leila de Bella Heathcote – responsável por uma das cenas mais constrangedoras do longa, onde Grey trata esta sua ex-submissa (olhe os termos que este filme nos força a usar!) como se ela fosse um... cachorro adestrado (?!!!) – e ainda o momento risível onde Grey marca, com batom, as partes de seu peito que Anastasia pode toca-lo – tadinho! Devido aos traumas dele, ele não pode ser tocados em outras partes, fazendo sua parceira ficar sem isso para se satisfazer também, deixando ela totalmente passiva para o sexo – sem exageros, mas em certas partes Anastasia parece apenas uma boneca inflável de Christian – mas tudo bem! Ele é Christian Grey! Bilionário, bo... mas espera ai! Não está tudo bem não!
Estamos diante de um personagem que, segundo a autora, é a imagem do “homem perfeito” para uma mulher, afinal, ele é lindo, bilionário, sedutor, o melhor na cama... e porque está história não poderia ter um protagonista desprovido de beleza e fortuna? A resposta é um tanto obvia: preconceito! O que mais assusta é uma mulher imaginar tal coisa. Uma visão tão machista sobre relacionamentos vindo de uma escritora, que parece realmente focada em querer dizer que Christian Grey é a exemplificação do “homem dos sonhos” de qualquer mulher, mesmo ele sendo arrogante, possessivo, machista e até opressor – como comprova ao negar um pedido de viagem a trabalho de Anastasia. Essa visão (ou falta de visão) da história soa doentia tanto para o publico feminino quanto para o masculino – os homens agora teriam que se esforçar para serem no mínimo parecidos com Christian Grey – quem não conseguir é melhor ir se acostumando a viver sozinho, porque nunca encontrarão uma companheira – reparem como essa condição ridícula e patética é refletida no personagem de Victor Rasuk, o amigo hispânico de Anastasia – dando a entender que o fato dele ser de outra etnia e de ter outro tipo de físico sejam justificativas para que sua amiga nem sequer dê satisfação pelo sentimento que ele tem por ela – conforme demonstrado no filme anterior e um pouco neste.
Mesmo com este tratamento absurdamente preconceituoso e limitado sobre a sexualidade, Cinquenta Tons Mais Escuros se sabota por completo ao não funcionar nem como um thriller erótico e nem como romance – com uma dupla em cena que não consegue justificar o que cada um sente pelo outro – a Anastasia de Dakota parecer ser a mulher mais sem personalidade da face da terra e o Christian Grey de Dornan... bom, ele é Christian Grey! Bilionário, bonito e o rei do sexo!
Única justificativa que roteiristas, diretor e a autora conseguem dar para explicar o comportamento nada saudável mentalmente de seus personagens pouco sensatos.