Não é de hoje que o cinema busca justificativas no comportamento das pessoas devido a traumas. A própria essência do drama inclui isto, mas existem projetos capazes de usarem esta composição de forma que justifique todo o andamento de uma narrativa ou temas, evocando uma identificação ou certa solidariedade emocional com os personagens retratados – isso é fundamental em filmes de gênero, onde a irrealidade de certas situações podem ser esquecidas devido ao desenvolvimento correto das personas em tela – portanto, o que o diretor Andy Muschietti faz nesta sequência do sucesso de 2017 pode não ter por trás uma novidade de temas – afinal, o livro do qual foi adaptado, do mestre Stephen King, já abordava o assunto – mas é inegável que ele sabe dosar de maneira precisa todos esses fatores que tornam os personagens de It – sejam suas versões adultas ou adolescentes – em seres multifacetados e interessantes, consequentemente, conseguindo transparecer uma verossimilhança capaz de atingir qualquer espectador.
Não são muitos os exemplares de terror de grandes estúdios de Hollywood que conseguem criar tramas com simbolismos, emoções mundanas e observações sobre os temores que as pessoas passam pela vida – e um filme do cinema mainstream iniciar sua história mostrando um ataque violento de um grupo de jovens a um casal homossexual é algo extremamente significativo, por deixar demonstrar que muitos dos males da sociedade se dão por falta do amor ao próximo, do respeito, da ignorância – do pensamento fechado – causas de tantos preconceitos, como a homofobia ou racismo – o filme anterior tinha uma leve critica ao terrorismo, que sempre assusta o ser humano – mas It – Capítulo 2 vai além: o mal não é só representado por assassinos ou bandidos, as pessoas “comuns”, essas que lidamos todos os dias, também tem seu lado perigoso – a maldade surge do silêncio diante da injustiça, ou ao apoiar quem oprime os outros, do bullying praticado nas escolas – enfim, o Pennywise do excelente Bill Skarsgard representa tudo isso e algo mais – sua ameaça é, além de física, psicológica – transformando esta continuação em quase um terror psicológico, em certos pontos.
A história se passa 27 anos após o filme passado, com os sete garotos do “Clube dos Otários” já crescidos e tocando suas vidas – deixaram o passado para trás, mesmo que forçadamente – mas, quando coisas estranhas voltam a acontecer na cidade de Derry – e está cidade fictícia, através de seus muitos moradores preconceituosos, racistas ou abusivos, representa uma grande parcela da população – o Mike, de Isaiah Mustafa, percebe que Pennywise estaria de volta e decide convocar os demais amigos – todos enfrentando seus próprios demônios na vida: a Bev de Jessica Chastain vive um relacionamento conturbado; o Bill de James McAvoy não consegue completar bem suas obras literárias e ainda se sente culpado pela morte do irmãozinho Georgie; o Eddie de James Ransone vive sob a pressão de um emprego não muito agradável, além de não estar feliz com seu casamento; o Ben de Jay Ryan que não esqueceu de sua paixão pela Bev; o Richie de Bill Hader que teme inconscientemente retornar a Derry; Mike também lamenta o triste fim de seus pais em um incêndio; e o Stanley de Andy Bean, que convive com a depressão – mesmo assim, os amigos acabam se reunindo para tentar destruir de uma vez por todas a ameaça da Coisa, que volta a tomar conta dos pensamentos do grupo, enquanto que lembranças do verão de 1989 vem a tona, para que várias decisões possam ser tomadas na época atual.
Tendo que estabelecer a continuação do desenvolvimento dos sete personagens – habilidosamente bem divididos, sem deixar algum menos enfocado (inclusive a ausência de um certo personagem é incrivelmente bem representada), o roteiro de Gary Douberman segue a evolução deles, demonstrando características da adolescência em suas vidas atuais – nesse ponto o filme é extremamente feliz em ressaltar os estados emocionais de Bill, que, vivido por McAvoy muito bem, conserva até mesmo sua gagueira de modo crível – até mesmo os empregos que escolheram vão se mostrando perfeitos para suas personalidades, como Richie ter virado um comediante – e, por conta disso, o longa consegue se dar bem com o humor, que caracterizava perfeitamente o grupo no filme anterior – embora derrape com relação a Bev de Jessica Chastain, ao inserir de uma maneira artificial que ela vive relacionamentos abusivos – igual vivia quando era abusada por seu pai – algo perdoável pela atuação sempre pontual e expressiva de Chastain e de Sophia Lellis, que vive a versão jovem dela, novamente.
O que poderia soar confuso é esclarecido em decisões de edição e transições bem elaboradas e criativas – particularmente gostei do momento onde Mike está ligando para os amigos virem a Derry e seu número aparece sem o nome no celular dos outros seis integrantes – demonstrando sutilmente como a vida adulta atrapalhou a amizade entre eles, afinal, nenhum deles tem sequer o contato dos outros amigos – sem falar quando um céu estrelado se transforma em um quebra cabeças, demonstrando o estado complexo das mentes deles em relação ao embate com Pennywise – inclusive, o longa é, novamente, rico visualmente – seja por sua fotografia com uma paleta de cores incríveis, transformando o vermelho dos balões e maquiagem do palhaço em um sinal de ameaça claro, além de uma mise-en-scène apuradíssima, principalmente quando lida com os flashbacks, mesclando as transições entre as versões adultas dos personagens com discretos efeitos especiais - e isso com o beneficio dos atores mirins compondo da mesma forma espirituosa seus papeis do primeiro capitulo.
Mas lamentavelmente existe um certo exagero nessa mistura de passado e presente, que transforma alguns momentos em repetições – como ao mostrar a mãe de Eddie ou ao reforçar o bullying que Ben sofria no colégio – além da inserção pouco funcional do personagem de Teach Grant, que vive a versão adulta do Henry Bowers, que era um rival do Clube dos Otários e tem seu trauma com o pai abusivo retratado de forma superficial, além de que sua fuga de um hospital psiquiátrico para infernizar os outros personagens não muda praticamente nada na trama – essas decisões quase pausam o segundo ato do filme – que só não tem um terceiro ato perfeito dado ao uso errôneo de certas tentativas de causar surpresa nas cenas de tensão – mas, felizmente, não é algo duradouro, afinal, Muschietti tem um domínio exemplar sobre a tensão e jamais apela para sustos fáceis – ele se aproveita novamente da boa concepção dos personagens e os coloca em situações aflitivas, se dando bem com as ciladas que Pennywise traz para os membros do Clube dos Perdedores – as cenas de “ilusão” que o palhaço proporciona são realmente bem executadas – o uso sutil de CGI é um acerto, principalmente na concepção visual do palhaço – repare como sua forma física nunca é igual sempre que aparece – ele aumenta e diminui de tamanho (e forma, as vezes) em cada cena – com efeitos bem renderizados – apoiado, claramente, pela composição visceral de Bill Skarsgard, que se sobressai a sua forte maquiagem e efeitos – assim como outras criaturas que surgem no filme – monstros com características que assustam devido a semelhanças com o passado ou algum trauma dos personagens – como a idosa que Bev encontra em seu antigo apartamento ou uma enigmática aranha com cabeça humana – tudo isso conduzido com uma fluidez que transformam um filme com quase três horas de duração em uma experiência que passa realmente sem cansar.
It – Capítulo 2 ainda encontra tempo para uma curiosa participação especial do próprio Stephen King, ao coloca-lo em cena com o personagem de McAvoy fazendo uma brincadeira por não ter gostado do livro deste – obvia referência ao fato de que King não costuma aprovar boa parte das adaptações para cinema de suas obras – e ainda existem referências a outros trabalhos do escritor, como O Iluminado (mais especificamente com o filme do Stanley Kubrick) e com O Apanhador de Sonhos e A Torre Negra – algo que pode ser uma surpresa para os fãs, mesmo que demonstrado de forma sútil.
Esta segunda parte da saga de Pennywise versus o Clube dos Otários acaba se mostrando tão boa quanto a anterior, por estender de forma natural e verdadeira seus temas sobre medos e receios para a vida, além de falar com sutileza sobre preconceitos, bullying e a maldade humana – mesmo que não seja um tema inusitado ou inovador, It 2 é ainda um filme de terror envolvente e emocionante, retratando a amizade de forma muito tocante, o que é algo diferente dentre uma história com elementos assustadores, sejam os da ficção ou da realidade por trás de seus personagens complexos e verdadeiros.