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    It - Capítulo 2
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    It - Capítulo 2

    Viagem aos traumas de infância

    por Bruno Carmelo

    A primeira parte de It - A Coisa, também dirigida por Andres Muschietti a partir do livro de Stephen King, surpreendia pela quantidade de elementos que conseguia equilibrar. O roteiro e a montagem apresentavam cada criança do Clube dos Otários, seus traumas específicos, suas relações familiares e como se comportavam dentro do círculo de amigos. Quando o palhaço Pennywise aparecia aos jovens, ajustando-se ao medo específico de sua vítima, a tensão era intensificada pelo fato de conhecermos os pontos fracos de cada um. O medo sob medida constituía um dos aspectos mais interessantes do primeiro It, espécie de jornada psicológica ao amadurecimento dos pré-adolescentes. Embora muitos filmes de terror gostem de citar traumas de infância como sintoma da complexidade dos personagens, a produção de 2017 preferia testemunhar o momento em que os traumas acontecem.

    A sequência efetua um salto de vinte e sete anos para descobrir como estes adultos são perturbados pela experiência com o palhaço sangrento. Richie (Bill Hader) utiliza o humor como válvula de escape, Beverly (Jessica Chastain) envolve-se em relacionamentos abusivos, Bill (James McAvoy) se torna um escritor frustrado, incapaz de fornecer um final satisfatório às suas histórias – e à sua história pessoal, é claro. Desta vez, a ambição narrativa se torna muito maior, e tanto o roteiro quanto a montagem precisam dosar uma quantidade ainda mais expressiva de subtramas e conflitos. It - Capítulo Dois precisa apresentar a vida de cada adulto do antigo Clube dos Otários, mostrar o momento em que cada um recebe o convite para voltar a Derry e combater Pennywise, retratar as dores específicas que restaram de décadas atrás, as vivências infantis que não tinham sido reveladas no filme anterior, o encontro de cada personagem com o palhaço e os instantes em que os protagonistas se tornam um grupo de amigos novamente. O projeto se impõe tantas obrigações que a refinada produção começa a apresentar suas fissuras.

    Isso significa que o filme nem sempre resolve a questão do “enquanto isso”, fundamental a narrativas com muitas ações e personagens simultâneos: o que está acontecendo com outros personagens enquanto vejo este aqui? No terço inicial, Mike (Isaiah Mustafa) se torna o motor da história, convocando os colegas, explicando o perigo do retorno de Pennywise e chamando a todos para efetuar um ritual urgente. As circunstâncias do plano são apresentadas de modo rápido demais, e as metáforas empregadas para representar o perigo – a infecção por um vírus, o misticismo dos nativos-americanos – são lançadas sem real aprofundamento. No terço central da narrativa, Mike praticamente desaparece, o que dilui a sensação de urgência no combate ao adversário. A fuga de um personagem de uma instituição psiquiátrica soa abrupta, e o importantíssimo espaço de um hotel vazio, espécie de limbo para os protagonistas, é mal explorado pelo roteiro. O fato de nenhum deles ter tido filhos, próximos dos 40 anos de idade, também mereceria atenção pela conexão com seus traumas.

    Enquanto isso, o projeto encontra tempo considerável para citações e autorreferências. Uma aguardada participação especial surge em cena relativamente longa; outros filmes de Stephen King são evocados em chave cômica, e diversos momentos são inseridos apenas para comparar os personagens adultos às versões infantis, garantindo que o espectador seja capaz de associar cada criança à sua caracterização futura. Para uma narrativa sobre como os traumas se fazem presentes, It - Capítulo Dois passa tempo considerável no passado, não para estudar as relações com a vida adulta, mas para ressaltar a nostalgia do Clube dos Otários. Os adultos ganham raras oportunidades de desenvolver a amizade entre eles – com exceção da ótima cena no restaurante chinês, que passa da descontração a momentos de puro terror em questão de minutos. Felizmente, o excelente elenco contribui à tarefa de identificação: os atores adultos foram muito bem escolhidos, tanto por seu talento dramático quanto pela semelhança com os atores mirins.

    Além disso, a sequência esbanja uma produção bastante competente, com efeitos visuais impecáveis e um uso de câmera muito elegante por parte de Muschietti. A cena de abertura – uma espécie de curta-metragem por si próprio, no qual Pennywise ironicamente “salva” um personagem – é ricamente trabalhada pela iluminação do parque de diversões, os planos angulados e a fina articulação da montagem. O diretor consegue efetuar um uso inteligente de transparências e reflexos, a exemplo das cenas com espelhos, dentro da casa abandonada, e do labirinto de vidros. A experiência de ver algo sem acessá-lo, ou de testemunhar como voyeur uma morte sem poder impedi-la aparece de maneira eficaz na sequência, que ainda encontra metáforas criativas para o retorno do recalcado – vide a presença de personagens literalmente soterrados em terra, água ou sangue, em representação da dor e do medo tomando conta de sua psique. Enquanto retrato de distúrbios psicológicos e de feridas não cicatrizadas, o projeto encontra potentes recursos visuais.

    Pennywise continua sendo um personagem de grande complexidade, primeiro graças ao trabalho multifacetado de Bill Skarsgard no papel, e segundo por sua própria mistura de agressão e fragilidade – sim, o palhaço também possui inseguranças. A figura sobrenatural nunca pareceu tão humana, tão equivalente aos jovens que ele atormenta (como num jogo de espelhos, justamente). No entanto, o perigo representado pelo palhaço é menor neste segundo filme, pois suas aparições não carregam mais a ambiguidade de antes: sabemos quando Pennywise está atacando, em contraste com a tensão do primeiro filme, quando as metamorfoses do personagem transitavam lentamente entre o natural e o sobrenatural, entre o real e a ilusão. Desta vez, transformadas num espetáculo mais convencional de efeitos especiais e jump scares, as aparições do palhaço são evidentes, sem grande preparação de clima (até porque, para condensar tantas linhas narrativas em menos de três horas de duração, a montagem parece ter efetuado várias concessões ao clima e ao tempo do suspense).

    Talvez a maior transformação do segundo filme diga respeito aos protagonistas: desta vez, eles combatem Pennywise por escolha, e não por instinto de sobrevivência. Antes, os garotos morreriam caso não encontrassem uma saída rápida para o perigo. Agora, eles chegam a Derry por senso de honra, e permanecem no local porque acreditam na necessidade de combater o vilão. As principais vítimas, desta vez, são crianças indefesas e minorias sociais, ao invés dos protagonistas. Deste modo, os adultos traumatizados passam de vítimas a heróis em nome de uma causa maior. A decisão de ficarem em Derry e se exporem ao risco da morte, provavelmente o conflito mais importante do segundo filme, é retratada numa passagem veloz. Mesmo assim, ela constitui a chave que transforma It - Capítulo 2 numa produção um pouco mais convencional do que a anterior. No primeiro contato com Pennywise, vinte e sete anos atrás, havia uma noção de improviso e coletividade na ação dos garotos. Desta vez, a união é fragmentada (em diversos momentos, eles são forçados a se separarem para que os planos deem certo), e a espontaneidade cede espaço ao martírio em prol dos mais frágeis.

    Atenção: possíveis spoilers a seguir.

    Não por acaso, rumo ao final, um discurso inspirador encoraja o interlocutor a ser “verdadeiro, corajoso, a acreditar”. Trata-se de um recurso solar demais para um filme sobre bullying, homofobia, assassinato de crianças e abuso psicológico, mas compreende-se que Stephen King e Andy Muschietti tenham optado pelo otimismo e a possibilidade de superação. No entanto, sem compreender exatamente do que os protagonistas estão abrindo mão em suas vidas atuais – conhecemos pouco de suas rotinas pessoais na fase adulta – o espectador se torna incapaz de medir o risco das ações e a consequência exata do enfrentamento a Pennywise em sua vida futura. O segundo It se revela uma produção criativa e repleta de belas imagens, muito superior à média dos filmes de terror. No entanto, obtém mais sucesso na tarefa de evocar traumas de infância do que construir a personalidade para além desses conflitos. Em outras palavras, não consegue conceber que indivíduos problemáticos superem seus problemas sem recorrer ao imaginário cinematográfico do heroísmo e do sacrifício.

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