Há sempre vantagem em assistir um filme no cinema, desde que seja uma sala de boa qualidade. Além do tamanho da tela e da qualidade do som, que não podem ser igualados por nenhum home theater e, é claro, a imersão no filme que somente a projeção no cinema proporciona, é interessante observar a reação da plateia, durante e após a projeção. Em Grande Hotel Budapeste, ouvi muitas risadas, gargalhadas gostosas durante o filme. Paradoxalmente, na saída do cinema ouvi o seguinte comentário: “Mas não é uma comédia”, num tom de reclamação, quase frustrado. Bom, Grande Hotel Budapeste é, sim, uma comédia. Na verdade, o gênero comédia decaiu tanto ultimamente, imperando o gênero besteirol, a paródia barata e a falta de criatividade, que uma comédia leve, mas inteligente, e que de certa maneira presta uma homenagem ao gênero na maneira como era produzido na época retratada pelo filme, faz com que o espectador atual nem consiga classificá-lo assim.
Além disso, cada diretor ou roteirista tem seu estilo de fazer comédia. Uma comédia de Blake Edwards (da série Pantera Cor-de-Rosa), é bem diversa de uma comédia de Woody Allen, por exemplo. Wes Anderson admitiu que em Grande Hotel Budapeste se inspirou muito nas comédias clássicas de Ernest Lubitsch (como Ser ou Não Ser, Ninotchka). Mas o filme também lembra o estilo de Jacques Tati (principalmente de sua comédia de observação social Meu Tio). Na verdade, admitindo sua inspiração, Anderson foi modesto em não reconhecer que já consagrou o seu próprio estilo, que cedo ou tarde será copiado ou servirá de inspiração para outro diretor. Prova disso foi o comentário que ouvi fora da sala de cinema, de alguém que ao assistir ao trailer do filme, comentou: “Mas esse filme só pode ser do mesmo diretor daquele filme dos escoteiros (Moonrise Kingdom)”. Wes Anderson ficaria realizado em ouvir essa observação vinda de um espectador comum e não de um crítico de cinema. Filme após filme, desde Os Excêntricos Tenenbaums que o diretor vem construindo sua marca registrada. A simetria dos planos, a milimétrica construção dos movimentos de câmera, o seu particular uso da cor na direção de arte como comentário e complemento à construção da narrativa, a fina ironia e delicadeza de seus diálogos e a grande afeição por seus personagens, embora aparentemente uma galeria de tipos bizarros.
Dizem que Anderson nunca mais foi o mesmo após dirigir O Fantástico Sr. Raposo, passando a incorporar abertamente, a partir de Moonrise Kingdom, elementos das animações. Esses elementos estão lá novamente, além de evidentes traços do cinema mudo. O que esses 2 gêneros têm em comum? Serem essencialmente visuais, quase cinema puro. Mas isso não quer dizer que Anderson descuide dos diálogos. Eles existem em profusão em Grande Hotel Budapeste, e nas cenas menos visuais são o ponto alto das sequências. E no mínimo uma frase, dita repetidamente no filme ficará na lembrança: “Ainda há um vislumbre de civilização nesse bárbaro matadouro que conhecemos como humanidade “.
A frase é dita primeiramente por M. Gustave (Ralph Fiennes) como quase um testamento em relação à época tumultuosa do período entre-guerras em que se passa a ação. Para Zero (o lobby-boy ou melhor, Sr. Mustafa), M. Gustave é um de seus mais ilustres representantes. Para nós, espectadores, fica claro que ela se aplica aos 2, mas também ao comissário de polícia Henckels, vivido por Edward Norton. E, metaforicamente, é um elogio de Anderson a seu inspirador, Stephen Zweig. Não resta dúvida que é Anderson se referindo a Zweig, e seu livro “O Mundo que eu Vi – Memórias de um Europeu”, que lhe serviu de inspiração para o filme , a frase "Para ser franco, acredito que seu mundo desapareceu muito antes de ele sequer ter nascido. Mas eu vou dizer, ele certamente sustentou a ilusão com maravilhosa graça".
A Europa do período entre-guerras de Wes Anderson é fruto de um imaginário coletivo que povoou e ainda povoa a mente de americanos quando tentam imaginar o que esta espécie de paraíso perdido foi um dia. O próprio hotel, praticamente um personagem do filme, é um apanhado dos grandes e tradicionais hotéis europeus, um misto de Ritz de Paris, Pupp, em Karlovy Vary ou Lido, em Veneza. A imaginária república de Zubrowka poderia ser qualquer país do leste europeu durante o Império Austro-Húngaro. E a polícia militarizada um arremedo, tanto no visual quanto no comportamento, de nazistas, stalinistas e fascistas ao mesmo tempo. Seus personagens, e habitantes do hotel, também são fruto de clichês: uma aristocrata viúva e rica, um concierge “Don Juan” de idosas incautas, um lobby-boy de bigodinho pintado.
Sou, na verdade, muito suspeito para falar de um filme de Wes Anderson, que considero um dos realizadores mais interessantes do cinema americano atual. O Grande Hotel Budapeste é tão delicioso de assistir quanto o recente Moonrise Kingdom, exemplo de filme que costumo assistir várias e várias vezes, sem me cansar. Aqueles críticos a quem Anderson não agrada, costumam se queixar que seus filmes são somente visual bem elaborado, sem conteúdo. Não concordo, absolutamente. É possível que Wes Anderson não se dedique a “grandes temas”, como atualmente fazem diretores como Michael Haneke – que parece obcecado em dissecar o período pós-moderno em que vivemos, e que nos nega o prazer, no dever de nos alertar sobre assuntos relevantes da sociedade. Os temas de Anderson não são o social ou o sociológico, mas o subjetivo da alma humana: a percepção de fugacidade temporal da felicidade, a nostalgia, a saudade de tempos melhores, que na nossa lembrança sempre superam a objetividade real dos acontecimentos.
Anderson é um chef das sobremesas, e não do prato principal. Não há nenhum demérito nisso. Para um viciado em doces como eu, às vezes a deliciosa sobremesa salva o jantar. As “sobremesas” de Wes Anderson são sofisticadas, de paladar refinado, e embaladas com capricho como os doces da confeitaria Mendl´s, onde trabalha Agatha em O Grande Hotel Budapeste. Anderson tem uma receita miraculosa para produzir seus filmes, e se superou desta vez, adicionando um elenco imbatível. É impossível que você não conheça de algum filme pelo menos uma meia dúzia dos atores convidados, na maioria deles, a uma pequena participação no filme. Além dos protagonistas Ralph Fiennes, F. Murray Abraham, Adrien Brody, Willem Dafoe e Jeff Goldblum, uma galeria de famosos desfila em aparições que os americanos chamam de “cameo” – em referência a um camafeu, um broche, um pequeno adereço e complemento das roupas das damas de antigamente, como a Madame D. (Tilda Swinton) do filme. Jude Law, Harvey Keitel, Bill Murray, Jason Schwartzman, Léa Sydoux, Tom Wilkinson, ou seja, ícones do cinema atual, e mesmo “habitués” dos próprios filmes de Anderson, aparecem em pequenas participações.
O Grande Hotel Budapeste é um filme divertido, inteligente, de prazer visual indescritível, feito com cuidado e atenção aos mínimos detalhes, cujo roteiro, diálogos e montagem fazem dele um filme que “desce” redondinho como um legítimo whisky scotch. Não seria pedir demais que o filme merecia vir com um selo de qualidade, como aquele que recebem conceituados vinhos de boas safras. O crítico Colin Covert disse: “Não estou certo da definição correta do que é uma obra-prima, mas O Grande Hotel Budapeste me parece estar muito próximo disto”. Eu não poderia resumir melhor minha impressão sobre o filme.