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    Saint Laurent
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Saint Laurent

    A marca e o mito

    por Bruno Carmelo

    “A maioria das biografias pretende retratar o homem por trás do mito. No meu caso, eu queria permanecer no mito”. A frase do diretor Bertrand Bonello é uma ótima síntese de Saint Laurent, filme cujo maior mérito é a distância respeitosa em relação à verdade. Ou seja, a imagem não insiste que “foi assim que aconteceu”, não existe o fetiche pelos segredos privados de uma vida pública. Quem for ao cinema atrás de notícias insinuantes sobre a vida do estilista francês ficará decepcionado.

    O drama opta por retirar de cena outro recurso muito famoso das biografias: a linearidade. Embora retrate o período entre 1967 e 1976 – fase mais ativa do artista – o roteiro faz idas e vindas no tempo, inclui fragmentos não datados e estabelece conexões com o período histórico (a revolução de maio de 1968, mostrada em oposição ao universo luxuoso da alta costura). Desaparece a noção de causa e consequência: Yves Saint Laurent (Gaspard Ulliel) não usa drogas porque é famoso, não abusa do álcool porque está aborrecido. Todas essas coisas – as drogas, o adultério, o tédio, as dificuldades criativas – aconteceram, sem que uma seja necessariamente a causa da outra. Desta maneira, o filme consegue ser completo, respeitoso e avesso aos psicologismos baratos que pretendem imputar a um único elemento (infância problemática, drogas, genialidade etc.) todos os problemas na carreira de uma pessoa ilustre.

    Além da abordagem moralmente responsável, a estética segue o mesmo percurso fragmentado e instigante. Bonello cria algumas cenas longuíssimas e outras minúsculas, interrompe as imagens quando não se espera, inclui música alta em momentos de pouca tensão, coloca câmeras em plongée (a chegada à casa de Jacques Bascher) e contra-plongée (o encontro com Betty Catroux) de modo a criar um ritmo estranho, voluntariamente desconfortável. O cineasta troca o prazer comum das imagens coloridas e luxuosas pelo cenário industrial da casa de costura YSL, onde as cores são frias, contrastadas, em tons de branco e preto. Com um olhar de sociólogo, e não de biógrafo, Bonello se interessa pela criação da marca, suas dificuldades financeiras e suas consequências no mundo capitalista. Discute-se mais sobre a inclusão da sigla YSL em bolsas e etiquetas do que sobre os infortúnios do jovem criador.

    Seguindo estas escolhas, os atores não se esforçam para atingir uma proximidade máxima com o real. Gaspard Ulliel não tenta se parecer excessivamente com o estilista, Jérémie Renier não transforma seu corpo naquele do empresário Pierre Bergé, Léa Seydoux cria versão masculina de Loulou de la Falaise. Contra o “respeito” solene em relação ao biografado, Saint Laurent consegue compartilhar a autoria, assumir que este é tanto um filme de Bonello quanto um filme do estilista. Por isso, era preciso combinar os traços pessoais dos dois, em uma massa criativa e inovadora. A maior responsabilidade do projeto é com o próprio cinema, e não com a vida de um homem existente. Saint Laurent é um filme livre.

    Tamanha liberdade e estranhamento podem ter as suas consequências desfavoráveis. Com edição estranha, enquadramentos insólitos e atuações pouco naturalistas, o filme se torna um prazer intelectual, cerebral. É difícil se conectar emocionalmente com esta figura que o roteiro faz questão de manter por trás de uma redoma de vidro, oculto sob uma marca. Como se não bastassem estas surpresas, as rápidas menções à infância e à velhice do estilista, rumo ao final, quebram novamente o ritmo, quando talvez o espectador estivesse finalmente se acostumando à projeção. Apesar do potencial popular do tema – a vida conturbada de uma personalidade famosa – a embalagem é pouco acessível, e o retorno financeiro do projeto deve ser limitado. Mas Bertrand Bonello obtém um resultado incrivelmente ousado para o formato engessado da cinebiografia, e nesse sentido, conquista uma façanha memorável.

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