A bondade de estranhos
por Bruno Carmelo“Eu sempre dependi da bondade de estranhos”. A frase célebre de Blanche Dubois, personagem de Um Bonde Chamado Desejo, vem à mente diante do suspense Nosso Fiel Traidor. A trama gira em torno do professor universitário Perry (Ewan McGregor) e de sua esposa, a advogada Gail (Naomie Harris), envolvidos por acaso com o alto escalão da máfia russa e da espionagem britânica. Eles ganham várias oportunidades de saírem do caso perigoso, que não lhes diz respeito, mas continuam arriscando as suas vidas por uma família de desconhecidos russos porque, como diz um personagem, Perry é um homem bom, e Gail é uma mulher honesta. É isto que pessoas boas fazem: elas salvam outras em perigo.
A lógica é evidente, e comum em produções de Hollywood, mas não se esperaria um raciocínio tão maniqueísta numa adaptação de John Le Carré. Talvez este texto em particular seja mais afeito ao heroísmo e às boas intenções. O filme, certamente, o é. O espectador pode estar mal acostumado, já que os livros do escritor britânico foram transformados em duas obras-primas do cinema recentemente - O Espião que Sabia Demais e O Homem Mais Procurado - ambas complexas e extremamente bem filmadas. Nosso Fiel Traidor não se compara aos outros dois, mas fornece um suspense atraente.
Seria inútil descrever mais detalhes da trama: como de costume nas histórias do autor, temos conspirações internacionais envolvendo grandes nomes da política e personagens com identidades suspeitas. A exemplo das outras adaptações, a obra é verborrágica, explicando constantemente quem é quem, qual é o próximo alvo, qual documento ou pen drive contém uma informação sigilosa etc. É fácil se perder na espiral de nomes e de cidades que a trama atravessa, mas a diretora Susanna White (mais conhecida pela fantasia infantil Nanny McPhee e as Lições Mágicas) trata de facilitar a estrutura ao reduzir a importância dos coadjuvantes, sequer apresentando alguns deles.
O resultado é um grupo de personagens pouco complexos, porém acessíveis a um público amplo. Ewan McGregor e Naomie Harris não sublinham a bondade de seus personagens, fazendo com que se envolvam no caso sem saber exatamente o porquê. Ambos os atores fazem questão de serem discretos, um tanto opacos, refletindo essa estranheza. Eles destoam da paisagem, ao contrário do investigador britânico eficaz, interpretado por Damian Lewis, e do mafioso de bom coração, cheio de trejeitos e sotaque carregado, composto por um inspirado Stellan Skarsgard.
A cineasta também simplifica o acesso do espectador às imagens. O Espião que Sabia Demais e O Homem Mais Procurado impressionavam pela frieza implacável de sua estética, pela elegância no retrato da elite. Susanna White opta por um caminho radicalmente diferente. Ela usa o widescreen para filmar de perto os rostos, criando uma sensação de claustrofobia. Com uma fotografia contrastada e saturada, mergulha os personagens no escuro, cobrindo-os de flares, reflexos e filtros brilhosos. O mundo da espionagem é filmado com a estética de um cassino ou cabaré, algo inovador, embora não necessariamente coerente com a proposta. Mesmo assim, é um ideal de beleza (brilhos, filtros, cores fortes, close-ups) acessível no circuito comercial.
O resultado final é uma tentativa de simplificação narrativa, estética e psicológica dos conflitos. Nosso Fiel Traidor torna-se uma adaptação palatável da obra de John Le Carré, mas também uma das menos estimulantes dos últimos anos.