Mais uma peça do quebra-cabeças
por Francisco RussoDevido à ditadura militar, muito sobre os bastidores da época foi mantido em sigilo ou, no máximo, pouco divulgado. Natural, afinal de contas o país vivia um período onde a censura atuava com rigor, impedindo a publicação livre de notícias e opiniões. Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem recuperado um pouco desta história, seja devido à vivência dos diretores mais antigos ou pelo próprio interesse da nova geração. Não há, por enquanto, um único filme que aborde a ditadura militar como um todo, ao menos não com a abrangência do ainda impactante Pra Frente, Brasil (1981). Mas há vários filmes que revelam trechos da época, como se pouco a pouco o cinema brasileiro fosse montando um quebra-cabeças sobre o assunto. Marighella é uma destas peças.
Dirigido pela socióloga Isa Grinspum Ferraz, o documentário é ao mesmo tempo uma pesquisa sobre a vida de Carlos Marighella e também um filme pessoal. Afinal de contas, Isa é sobrinha do personagem principal da história, muitas vezes chamado de "tio Carlos" no próprio filme. Esta dualidade entre o aspecto familiar e o histórico pontua todo o documentário, provocando um nítido desnível. Por mais que seja claro o interesse em humanizar Marighella, evitando transformá-lo em mito e mostrá-lo como homem comum, a insistência em associá-lo como tio deixa de ser uma mera curiosidade inicial e, aos poucos, se torna um exagero desnecessário, que desvia o foco do que realmente interessa.
O forte do documentário é o material de pesquisa obtido. Seja através dos discursos de Marighella, que refletem a força de suas palavras mesclada ao engajamento por ele proposto, até a bela e surpreendente apresentação da prova em versos. As imagens históricas e os depoimentos registrados também ajudam a contar a história de como Marighella se interessou por política e acabou se tornando o inimigo número um da ditadura militar, ao criar o Manual do Guerrilheiro Urbano. Entretanto, o filme peca por certos exageros, como a repetição da explosão de uma estátua de São Jorge em câmera lenta e o rap feito por Mano Brown, tocado nos créditos finais, que destoa do tom do filme apresentado até então.
Como um todo, Marighella tem qualidades no sentido de fornecer mais material para revelar um dos diversos enfoques existentes sobre a ditadura militar brasileira, mas seu aspecto pessoal e o excesso de didatismo por vezes cansam. Sua função acaba sendo cobrir uma lacuna deixada por outros filmes sobre o mesmo tema, como Batismo de Sangue, O Que É Isso, Companheiro?, Hércules 56 e Cidadão Boilesen. Todos trazem histórias citadas em Marighella, mas não aprofundadas por este filme – assim como Carlos Marighella foi citado neles, sem ser também aprofundado. Ou seja, trata-se de mais uma peça neste quebra-cabeças que o cinema brasileiro vai, ano após ano, montando sobre um dos períodos mais negros da história brasileira. Mediano.