Não assisti ainda a todos os filmes do diretor Denis Villeneuve, mas desde Incêndios acompanho sua carreira e só tenho elogios desde então. Assistir à O Homem Duplicado é complicado e muitos (inclusive eu) dirão que não há um significado específico para o filme ou se há, são tantos que só enriquecem o filme. Infelizmente julgar o filme ruim por não entendermos funciona apenas como uma válvula de escape para não ter que justificar um mínimo de esforço para pelo menos concatenarmos alguma ideia. Isso é o interessante do cinema. David Lynch que o diga com seus filmes enigmáticos que ao chegar em Império dos Sonhos realizou algo (in)decifrável, mas que em sua forma é narrado de maneira que não tiramos os olhos daquele pesadelo. Enfim quando assisti à O Homem Duplicado tentei ao menos ter uma definição sobre a narrativa e por isso é impossível não falar com Spoiler. Por isso se não assistiu e não quer saber nada sobre o filme não continuem lendo.
O filme narra a história de um homem chamado Adam Bell/Anthony St. Claire (Jake Gyllenhall) que possui uma dupla personalidade que ao mesmo tempo é um professor de história e um ator (como sua mãe – interpretada por Isabella Rossellini - diz de terceira categoria). Sua mulher Helen (Sarah Gadon) que está grávida acha que ele é apenas um ator. Durante algum tempo ele se encontrou com uma mulher chamada Mary (Mélanie Laurent) que apesar de sua esposa ter descoberto o perdoou. Vive uma rotina de trabalho-casa-encontro com a amante e aparentemente vive com insônia. Além disso frequenta ambientes em que participa de orgias secretas. Ele vive uma vida dupla e só começa a se dar conta de sua dupla personalidade quando em um filme reconhece um homem igual a ele. A partir daí tenta descobrir quem é aquele homem igual a ele.
O filme é baseado no livro de José Saramago O Homem Duplicado e teve seu roteiro escrito por Javier Gullón. Logo no início há uma panorâmica da cidade e ouvimos um recado deixado para Adam Bell/Anthony de sua mãe agradecendo por ele lhe mostrar seu apartamento novo e demonstra uma preocupação dizendo que não sabe como ele consegue viver assim. Que ele ligue para ela para se encontrarem. Em seguida uma cena de uma mulher grávida nua na cama que acaba olhando para o que supomos seja ele. No fim dessa sequência há a frase na tela que diz: “O caos é uma ordem por decifrar.” Nessa sequência já demonstra que: o personagem tem um problema (dito pela sua mãe), no mínimo já teve algum contato visual com a mulher grávida já que claramente isso é uma lembrança, pois a maneira como ele filma apenas os olhos refletidos no espelho me fez pensar na expressão “os olhos são a janela da alma” e então nessa introdução terminamos com a frase sobre o caos. Bem já sabemos que ele tem um problema, deve conhecer uma mulher grávida e que esse problema tende a ser algo que está interiormente (como sua alma).
Na cena seguinte assistimos a Anthony (aqui claramente o lado ator), com uma chave que permite a ele junto do porteiro de seu prédio (cena lá adiante do filme que veremos que é o porteiro não só pela fisionomia, mas também pelo diálogo) se dirigindo há um quarto onde parece ter rituais em que uma mulher parece se masturbar e a outra traz uma aranha dentro de uma bandeja. Após esta ser solta ela a princípio irá esmaga-la pisando em cima dela (aliás cena que causa um impacto, uma tensão e um nervosismo fantástico). A cena remete há algo onírico. A chave que abre as portas de nossa mente. A cena é conduzida de maneira obscura. Sem nenhuma iluminação em Anthony quando este vai entrar no quarto. Não sabemos se aquilo realmente é verdade ou acontece na cabeça do personagem. Acredito que a cena realmente existiu mas a cena da aranha é algo que vem de dentro de sua cabeça, pois o ato da aranha me fez pensar que a mesma simboliza para ele o seu casamento e que o ato de esmaga-la seria algo como se ele estivesse destruindo seu casamento. Cheguei à conclusão por causa do final do filme (a última cena), onde Helen/Aranha são a mesma pessoa. Há cenas no decorrer do filme que nos indicam uma teia de aranha. Por exemplo uma composição de fios ou um vidro de carro quebrado. Nesse caso acredito que essas teias são metáforas para a vida dele que estão tão entrelaçadas e que ele está confuso por se tratar de uma pessoa que possui duas personalidades e está preso em si mesmo.
Continuando a falar sobre aranhas há uma aranha gigante que aparece andando pela cidade. Em minha opinião ela representa a mãe dele. Chequei a conclusão em um plano aberto em que Adam está conversando com sua mãe e além deles dois aparecem alguns lustres que evocam a imagem de aranhas acima de sua cabeça. Após essa conversa a aranha gigante aparece. Como o artrópode representa para mim a mulher dele (algo voltado para o gênero feminino), aqui ela representa uma mãe dominadora. Isso é mais uma suposição do que uma afirmação, pois em nenhum momento há qualquer referência a isso.
Após a cena obscura da orgia acredito que entramos na sua cabeça, nas suas lembranças. Assistirmos a rotina em cenas que praticamente se repetem e é o que ele nos conta através de sua mente, ou seja, os acontecimentos ocorreram, mas não da maneira que assistimos, e sim do que ele formou na sua cabeça. Depois ele acha uma forma em sua cabeça de tentar se encontrar e começa a se achar através do cinema, já que o cinema é a representação de algo, isto é, da mesma maneira como está acontecendo com ele, uma representação. Seu cérebro trabalha para encontrar uma maneira de resolver seu problema e assim conseguir com que ele mesmo se identifique já que ele representa dois papéis em uma pessoa. A medida que ele se identifica ele terá que tentar unificar as duas pessoas.
Algumas cenas me fizeram refletir sobre a tese de que o filme se trata de uma única pessoa: Helen fica perturbada não por existir uma cópia de seu marido, mas sim por ele não lhe reconhecer. No momento em que eles marcam um encontro em um hotel ele diz: “We’re going to call you on Sunday with directions”. Isso evidencia a dupla personalidade quando ele diz We=Nós. Sem contar que nessa mesma cena ele diz que teve a sensação de que Anthony ia ligar. Isso é lógico porque eles são a mesma pessoa. Ele conversa com a mãe e ela diz para ele que ele tem um emprego ótimo e que deveria esquecer a fantasia de ser um ator de terceira. A cena do acidente evidencia a morte metafórica de um deles e o vidro remete a uma teia, só que quebrada, quase despedaçada como se ele estivesse a ponto de se libertar daquilo ou que aquilo que o prendia se foi. A notícia do rádio que fala do acidente não vai até o fim e assim poderia ser um acidente comum do dia a dia e não deixa de evidenciar que morreu a pessoa física que pensamos. O diretor Denis Villeneuve estabelece uma antítese entre os dois, como se eles fossem dois lados de uma moeda, o id e o super ego ou o eu e o não eu (já que até Hegel é citado no filme e podemos enxergar a dialética no roteiro). Ele consegue isso quando em uma cena coloca os dois lado a lado um de camisa branca e outro de camisa negra. Quando chegamos ao final do filme o blazer que o personagem de Jake Gyllenhall coloca é preto (não mais o marrom que ele tanto usa). Assim entendemos que agora é uma única pessoa com os dois lados a princípio controlados em um homem só.
Não poderia deixar de falar sobre os aspectos técnicos que são muito bons. A boa fotografia que parece ter um filtro marrom/alaranjado que evoca algo de introspectivo ao personagem. Uma iluminação que ajuda a contar o filme. Todos os atores estão muito bem nos papéis, mas destaco Jake Gyllenhall que estabelece o antagonismo dos personagens de maneira clara e Sarah Gadon transmite todo o seu horror no que está acontecendo sem contar que demonstra uma mistura de angustia e medo pelo fato de ter uma pessoa que ela não conhece totalmente ao seu lado. O roteiro conseguiu pegar o essencial do livro. O figurino que sutilmente favorece totalmente a narrativa e a montagem que mesmo sendo um filme denso consegue faze-lo fluir bem. Por fim a música “After the Lights Go Out” da banda The Walker Brothers que sugere algo que acontece na mente do personagem e em sua memória.
Enfim, tudo aqui escrito não passa de uma visão/sensação que tive com o filme. Com certeza há mais detalhes que precisam ser revelados e ideias que tentem criar uma linha de dedução já que com certeza essa citada aqui deve ser uma possibilidade de muitas. Mesmo que não se ache nada vale a pena refletir se o filme provocou alguma sensação, pois ainda sim estará cumprindo com o que se pode definir sobre arte. Não será por não entender que o filme é ruim. Para mim O Homem Duplicado é um filme que faz com que o espectador saia da inércia, do estado de letargia, que nos provoca a buscar mais e mais para entender as simbologias e enaltece mais a carreira de um diretor que já se estabeleceu e está seguro no que faz. Este filme é mais uma obra consistente de sua carreira.