Sangue bom
por Pablo MiyazawaÀ primeira vista, Bloodshot lembra vagamente um filme de ação à moda antiga, daqueles que os anos 80 e 90 produziram aos montes. Ao mesmo tempo, suas premissas são relativamente atuais. Os temas centrais são nanotecnologia, realidades alternativas e corporações malignas. O diretor tem uma longa carreira na indústria dos videogames. E o protagonista é o sempre disposto Vin Diesel, que interpreta algo próximo a um super-herói indestrutível trazido do mundo dos mortos.
Antes dessa ressurreição acontecer, Diesel é "apenas" o implacável agente militar Ray Garrison, que de cara vemos resolvendo sozinho um conflito armado contra uma célula terrorista no Quênia. Com algumas cicatrizes a mais, ele retorna aos braços da esposa, Gina (Talulah Riley), e ao paraíso onde moram, numa idílica vila italiana. A calmaria é interrompida quando o casal é sequestrado e levado a um frigorífico. Amarrado a uma cadeira, Garrison presencia Gina ser executada sadicamente ao som de "Psycho Killer", hit-chiclete do Talking Heads. Ele jura vingança ao assassino antes de também receber um tiro fatal. Toda essa narrativa é apresentada antes mesmo de o título do filme aparecer na tela.
Ao despertar sabe-se lá quanto tempo depois em um laboratório, Garrison descobre que de fato morreu, mas foi revivido graças a um bem-sucedido experimento secreto. Obviamente, nada mais é como antes: seu corpo se tornou indestrutível devido a nanorobôs semelhantes a insetos ("nanites") que substituem seu sangue e reconstroem automaticamente qualquer tecido ferido. Além disso, adquiriu superforça, supervelocidade e consegue acessar informações remotamente de qualquer banco de dados. Ao mesmo tempo, ele não se lembra de nada sobre sua vida anterior. E como uma máquina de matar vingativa e infalível, pode ser reprogramado repetidamente, sem nem se dar conta disso.
Sem disfarce, e inclusive até tirando sarro desse fato, Bloodshot assume sua inspiração óbvia nos típicos filmes de brucutus indestrutíveis como Stallone, Schwarzenegger e afins. Seu diferencial está na embalagem modernizada, decorada por lampejos de pancadaria e demolição carregados (até demais) de efeitos digitais. É visualmente impecável a primeira cena em que Garrison demonstra seus novos poderes, em meio ao breu de um túnel de Budapeste envolto em farinha (é sério). Outra, também vistosa, mostra uma batalha brutal em queda livre do protagonista com outros dois supersoldados. O fato de ambas sequências parecerem extraídas de um videogame não é exatamente um demérito, mas diz muito sobre as virtudes cinematográficas do diretor estreante Dave Wilson -- que por sinal, fez carreira criando cenas animadas para jogos eletrônicos de publishers como BioWare, Ubisoft e Bethesda.
Van Diesel, por sua vez, confirma-se como um icônico ator de muitas facetas, ainda que sejam todas muito semelhantes entre si. Dificilmente sua imagem irá se descolar do Dominic Toretto de Velozes e Furiosos (o qual interpretou quase uma dezena de vezes), do Xander Cage da franquia Triplo X, ou do Riddick de Eclipse Mortal. Aqui sua performance não é lá muito diferente dessas, e logo fica claro que o filme não daria certo sem oa presença do astro que melhor veste regatas brancas em Hollywood. Após meia hora, é impossível imaginar outra figura interpretando Bloodshot com tanta dedicação (o nome do herói, aliás, jamais é mencionado nos diálogos).
Não daria para esperar muito mais de Bloodshot do que demonstrações do carisma de Diesel e cenas impressionantes de destruição generalizada. Mas o filme ainda reserva surpresas na forma de boas performances dos coadjuvantes, que parecem se divertir em meio a toda bagunça. Guy Pearce ressurge canastrão e autêntico como o megalomaníaco Dr. Harting, a mente responsável pela tecnologia revolucionária. Para quem se lembra de seu protagonista no ótimo Amnésia, chega a ser curioso vê-lo retornando após 20 anos à temática do "nem tudo é o que parece", dessa vez do outro lado do balcão. No time dos bonzinhos, Lamorne Morris garante as risadas como o hacker carente Wilfred Wigans, enquanto Eiza González está magnética como KT, outra das super-humanas que ajuda Garrison durante seu processo pós-traumático.
Bloodshot é um tipo de filme datado que faz todo sentido atualmente -- afinal, trata-se de uma história de aventura envolvendo heróis superpoderosos (para quem não sabe, a obra é baseada em uma HQ obscura da editora Valiant, fundada no fim dos anos 80 por um ex-editor da Marvel). Mas que fique claro que o resultado está a anos-luz da qualidade dos competidores mais poderosos dos universos cinematográficos da Marvel e da DC. Mas com expectativas reduzidas e boas doses de paciência, a diversão é bastante possível. A sugestão para o público é fazer o que ocorre com o protagonista durante boa parte da história: relaxar, desligar o cérebro e não refletir muito sobre o que acabou de acontecer.