A receita é clara: Emma Thompson e Tom Hanks, a história sobre um dos musicais mais adorados do cinema, um tour por um dos estúdios mais fascinantes do planeta e, além de tudo, uma produção da Disney. Tinha como Walt nos Bastidores de Mary Poppins dar errado?
Talvez, se estivesse nas mãos da pessoa errada. Mas felizmente não é o caso. John Lee Hancock – diretor dos sucessos Desafio do Destino e Um Sonho Possível – comanda a obra e, apesar dos acidentes de percurso, faz bom uso desse conjunto maravilhoso de vantagens.
Baseada na biografia escrita pela jornalista Valerie Lawson, a narrativa passeia entre a infância da escritora P.L. Travers, enfatizando sua relação com o pai, e as reuniões com a equipe da Disney para tratar da venda dos direitos para a adaptação cinematográfica de sua personagem mais famosa, a babá inglesa Mary Poppins. Ao impor a decisão de supervisionar a escrita do roteiro, Travers acaba estabelecendo uma relação com o poderoso Sr. Disney – ou Walt, como ele preferia –, que insistiu, por 20 anos, para levar Mary Poppins às telas.
Por um lado, Walt nos Bastidores de Mary Poppins mima a geração de fãs da querida Mary Poppins e tocará profundamente aqueles que já desejaram estar sob seus cuidados. Por outro, ao fazer uma linda homenagem aos 50 anos do musical, a obra instiga uma boa dose de curiosidade na geração seguinte, que talvez nem tenha visto o homenageado. A faixa etária menos mirada é a do público usual da Disney, pois dificilmente a criançada ficará fascinada com a história, com as imagens, ou mesmo com a possibilidade de ligar um rosto a um nome tão conhecido, se é que eles sabem que Walt Disney é, além de uma marca associada a infinitos produtos, uma pessoa.
Emma Thompson no papel de Pamela Lyndon Travers não decepciona. Sua atuação sobressai quando a escritora está sendo insensível e implicante e, a cada patada, é possível reconhecer o sangue britânico de Thompson, o dom para o sarcasmo que a tornou uma grande atriz da comédia de entrelinhas. Mesmo assim, durante as conversas tocantes com Walt, com o motorista Ralph ou mesmo quando está sozinha, Travers perde o ritmo e fica sem graça, até mesmo um pouco entediante.
Mas, se é que existe culpa nisso, ela é inteiramente do roteiro (ou da própria Travers?), pois a química entre Emma Thompson e Tom Hanks é inegável. O veterano encarna um Walt Disney bom de papo, supersimpático, que vê em Mary Poppins mais do que uma fábrica de milhões. Seus motivos pessoais para fazer o filme caracterizam-no como um excelente pai, um filho ressentido a procura do fim de uma relação ruim e um ser extremamente generoso.
A atuação de Tom Hanks quase nos faz esquecer de todas as dúvidas e polêmicas que cercam a personalidade do poderoso Disney (mas nem toda roupa suja se lava em casa) e assim ajuda a fixar uma imagem de empresário exemplar que durará por um longo tempo. Ao ressaltar a visão aparentemente simples do mundo de Disney, de que “um sorriso é tudo”, Hanks contrabalança perfeitamente seu personagem com a rigidez da Pamela Travers criada por Emma Thompson. As performances individuais dos dois atores se complementam para elevar a performance de todo o elenco – completado por Colin Farrel, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, B.J. Novak e Kathy Baker – que é um acerto em cheio do longa.
Em meio a tudo que funciona perfeitamente, algo soa desafinado. Apesar do tom inicial de leve comédia, os flashbacks da infância de Travers vão ganhando uma conotação trágica, que criam uma atmosfera pesada, totalmente contrastante com a magia que Walt Disney quer passar com Mary Poppins. O filme gasta muito tempo tentando traçar a relação entre o pai da autora e o pai do livro, George Banks, mas é difícil encontrar a conexão essencial entre o alcoólatra depressivo de Colin Farrel e o nada sexy homem das finanças de David Tomlinson em Mary Poppins. (Aqui fica claro o porquê do título original, Saving Mr. Banks, o quão genial ele é, e porque a tradução deixa tanto a desejar.
Quando Walt percebe o ponto fraco de Travers e promete-lhe que o filme será uma espécie de rendição para seus sentimentos em relação ao pai, ela aceita a proposta com estranha facilidade. Em uma conversa de dez minutos, ele a convence ficar de fora do processo criativo e deixar a Disney fazer sua mágica. Existe aí uma virada na personalidade dominadora e até rabugenta de Travers que quase nos incomoda. Ela é descrita durante todo o filme como uma grande defensora dos detalhes de sua Mary Poppins, mas, em poucas cenas, é substituída por alguém facilmente encantada pelo mundo dos sonhos. O efeito só não é completamente negativo porque já sabemos de antemão que Walt Disney acertou em sua promessa.
E o mundo dos sonhos faz jus à nossa imaginação? Sim e não. Por um lado, os cenários mostrados são minimamente detalhados, por outro, minimalistas. São poucos os ambientes presentes no filme e, no entanto, eles estão cheios de pequenos segredos. Os estúdios Disney, por exemplo, se resumem ao escritório de Walt e à sala de reuniões. No escritório, decorado em tons pastéis, o que chama realmente atenção é a prateleira lotada de estátuas do homenzinho de ouro. Apesar de as paredes estarem cheias de fotos e as estantes repletas de livros, miniaturas, além de todo tipo de quinquilharia possível, não somos contemplados com uma única tomada que desvende o lugar com um olhar cuidadoso.
O mesmo vale para a Disneylândia, que é apresentada pelo seu parque mais glorioso, o Magic Kingdom. Ao invés de nos levar para um passeio pela terra da fantasia, Hancock prefere caracterizá-la com o rosto do Mickey desenhado no jardim, muita gente e uma volta rápida em um carrossel. Essa escolha de se restringir ao que é importante parece refinada pela resposta de Travers quando perguntada se gostaria de fazer um passeio pelos estúdios: “Ninguém gosta de exibidos”. Assim, é impossível decidir entre falha na direção ou ironia silenciosa de Hancock.
A trilha de Thomas Newman tem pontos altos, principalmente quando dialoga com as canções memoráveis de Mary Poppins, mas como conjunto não é algo que retém a atenção durante o filme. Nesse contexto, a indicação que ele recebeu ao Oscar de Melhor Trilha Sonora – a 12ª de Newman – fica parecendo mais uma homenagem às duas estatuetas que Mary Poppins deu aos irmãos Sherman.
Por ser um filme da Disney, já era esperado que a história fosse romantizada de forma a ir de encontro com a imagem da empresa. Ainda que a transformação das reais lágrimas de raiva de Travers em lágrimas de emoção, após a primeira exibição de Mary Poppins, sejam um abuso da licença poética, tudo isso parece ser minimizado à luz da nostalgia que o filme traz.
No fim, a verdadeira conquista de Walt nos Bastidores de Mary Poppins é a vontade que provoca de revisitarmos o musical de 1964. Feito isso, o que saltam aos olhos são as incontáveis concessões que Travers fez à gigante da magia – é um musical; estrelado por Dick Van Dyke; com várias partes animadas e um pai de bigode que veste mais vermelho do que deveria –, quase todas contadas em Walt como anedotas engraçadíssimas, mas que nos faz questionar se, quando em negociação com a Disney, a opinião dos autores tem qualquer peso sobre as adaptações de suas obras. Ao que Walt indica, não. Mas alguém consegue (ou quer) imaginar Mary Poppins sem tudo isso? Chim chim cheree, Sr. Disney.