Grandes obras acabam criando uma mitologia própria. Isso é inegável. Com as dos Estúdios Disney não poderia ter sido diferente, sendo o seu principal mito aquele envolvendo as Princesas, criaturas jovens, belas, adoráveis, amorosas, aventureiras e verdadeiros poços de virtude, normalmente incomodadas com o status quo que ocupam, buscando o novo, normalmente apresentado na figura de um Príncipe Encantado que a compreende. Esse foi o mito basilar, a primeira pedra que levaram o velho Walt Disney a criar o primeiro longa de animação com Branca de Neve, e, no início da década de 1990, reassumir o trono de grande estúdio de animação com a chamada "Disney Renaissance", cuja Magnum Opus foi outro filme com a mesma temática, A Bela e a Fera.
Ora, tal mito ,por raras vezes, nos mais de 70 anos de produção de longas dos estúdios, chegou a sofrer modificações em suas estruturas. No já citado a Bela e a Fera temos a construção de um relacionamento amoroso substituindo a paixão a primeira vista; no recente e excelente A Princesa e o Sapo o virtuoso Príncipe é substituído por um boêmio irresponsável. Outras modificações pontuais surgiram aqui e acolá, mas o cerne, a estrutura, se manteve inalterada: por mais aventureira e valente que fosse a personagem principal sua contraparte romântica e perfeita sempre a salvava e levava ao "e foram felizes até agora". Até agora. Coube a Frozen revisar o mito.
Ao narrar a historia das princesas Elsa, portadora do poder de controlar o gelo e a neve, extremamente insegura devido ao mal que tal dom (ou maldição) podem trazer; e sua irmã Anna, uma personagem com todos os traços clássicos e românticos do gênero; a película flerta com o clichê para que, ao fim, este seja desconstruído. Anna quer tudo que todas as princesas deseja: viver uma vida recheada de aventuras e, claro um grande amor. Porém, seu romantismo e inocência exacerbados podem ser também sua maior falha. Além disso ela não deixa de ser corajosa e proativa, tomando para si a missão de encontrar sua irmã e reverter o feitiço que colocou o reino sob o gelo eterno. Já Elsa se torna talvez a personagem feminina mais complexa do universo Disney, acreditando que a solidão é o único caminho para ser quem realmente é, sendo uma mistura de medos e de uma criação super-protetora e fria desenvolvida por seus pais. Ou seja, uma princesa (ou rainha) que não se encaixa no clássico arquétipo perpetuado nas obras do estúdio de animação.
No mais, a ação se desenvolve sem a presença de um personagem masculino extremamente forte ou marcante, cabendo aos homens da película, inclusive, um antagonismo , salvo no que tange ao protagonista Kristoff, que, mesmo assim, salvo no ultimo ato de filme, pouco se aproxima dos padrões clássicos do herói disneyano. Nesse ínterim, vários elementos clássicos dos contos de fada acabam por ser desvirtuados: o amor a primeira vista vira piada, o a dependência frente aos homens, anulada; e até mesmo o ato de amor verdadeiro, talvez o maior clichê do gênero, não acaba sendo aquilo que todos esperavam. Por momentos a trama se aproxima a do primeiro Shrek, que ridicularizou os contos de fada, dando um passo a mais em suas conclusões.
No entanto, não perde o filme elementos clássicos da obra do estúdio, o que o torna ainda melhor. É o retorno da Disney ao musical, com músicas de primeira linha, comparáveis a grandes clássicos, como Rei Leão. Do You Want to Build a Snowman e Let It Go são incluídas em contextos lindíssimos e exemplificam a beleza do trabalho musical da obra. Personagens secundários com grande carisma, como o boneco de neve mágico Olaf e a rena Sven, roubam muitas vezes a cena e engrandecem a obra. Além disso, a história continua com tons edificantes, recheada de metáforas e excelentes lições de moral. Por fim o apuro técnico na animação garantem um visual arrebatador e belíssimo, com predominância do branco e cinza da neve e do gelo em uma verdadeiro espetáculo. A cena inicial do filme nos faz esquecee que se trata de uma animação; o numero musical solo de Elsa que representa sua libertação é pura poesia visual.
Disney mais uma vez demonstrou seu imenso potencial para se reinventar. Ao questionar sua base filosófica mais forte e, ao mesmo tempo mais rentável, os diretores Jennifer Lee e Chris Buck acabaram por criar uma obra prima da animação; um clássico instantâneo por sua bela e edificante mensagem e uma ruptura com o antigo em vários outros elementos. Se o estúdio vai continuar essa nova e progressista linha dramática, não se pode saber. Mas que um marco foi criado isso sim. Um novo Magnum opus surgiu, frio em tese, um banho quente para os sentidos e o coração.