Azul é a Cor Mais Quente chega cercado de polêmicas. E todas as suas derivantes tem origem nas discutidas cenas de sexo. O filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, cuja decisão foi criticada em função de suas ousadas cenas de sexo, consideradas por alguns como quase pornográficas. Logo após o Festival, as duas principais atrizes (ambas premiadas em Cannes) passaram a se queixar publicamente do diretor tunisense Kechiche, acusando-o do tratamento dispensado para obter o realismo desejado nas tais cenas, chegando a dizer que se sentiram como prostitutas.
Fatalmente, o filme passou a chamar a atenção do público por estas razões, e não por suas qualidades, que são inegáveis. Muitas das pessoas que se interessem e cheguem a ir assisti-lo no cinema, irão buscando as tais cenas quentes de sexo entre duas mulheres. Mas o filme não foi feito absolutamente com a intenção de saciar a curiosidade voyeurista do espectador. Quem for assisti-lo somente com esta ideia na cabeça, sairá frustrado. Azul é a Cor Mais Quente não é absolutamente O Último Tango em Paris ou O Império dos Sentidos numa versão com duas mulheres. Quem for assisti-lo sem saber das cenas de sexo que contém, poderá se sentir chocado ou ao menos desconfortável, mas poderá apreciar suas qualidades dramáticas. É verdade que não há como ignorar as cenas de sexo, principalmente aquela que marca o primeiro encontro de Adele e Emma, que é particularmente longa e realista, mas não chega a ser explícita.
Então chegamos à questão: as tais cenas de sexo são mesmo necessárias? Para o diretor Kachiche, um dos objetivos de seu filme era banalizar uma relação homossexual, tratando-a com a naturalidade de qualquer outra relação amorosa. Em um filme sobre uma paixão, até mesmo obsessiva, seria natural e esperado a presença do sexo. Além disso, basta lembrar de uma questão colocada no filme. Emma é estudante de Belas Artes, e numa conversa com Adéle, esta lhe pergunta: por que chamamos de "belas artes", existiria uma arte feia? Ao retratar sua paixão homossexual, o diretor parece ele próprio nos perguntar: existe amor "feio", existe sexo "feio", o sexo é feio? Culturalmente, e por motivos religiosos, o sexo sempre foi (e ainda é) um tabu. Ao longo do tempo, a cultura ocidental deixou de considerar a nudez como algo inaceitável, passando a apreciar a beleza do corpo humano, o feminino principalmente. Mas o sexo em si, o ato sexual, sempre foi "mascarado" nas artes em geral, porque há um consenso geral que ele é feio - pode ser feito, mas não deve ser visto, a não ser com propósitos puramente libidinosos. Ao retratar suas cenas de sexo, o diretor está acima de tudo provocando esta discussão. Qualquer um irá perceber que estas cenas não são erotizadas ou romanceadas, mas tratadas com um realismo crú poucas vezes visto num filme dramático.
Azul é a Cor Mais Quente é um típico filme francês na sua escritura cinematográfica. Em muitos aspectos ele me lembrou o estilo de diretores como André Téchiné (As Rosas Selvagens) ou Maurice Pialat (Aos Nossos Amores) . O desenrolar do filme não parece estar seguindo um roteiro pré-escrito, mas dá a impressão, como num livro, que são as personagens que estão escrevendo sua própria história, e o diretor apenas a acompanha, filmando. Por isso, sua aparente longa duração tem o grande mérito de nos fazer conhecer Adèle em toda sua complexidade. Suas dúvidas, seus conflitos, suas angústias transformam o filme quase em um diário filmado. O filme é de tal forma focado na história e suas personagens, que não temos quase nenhuma referência sobre espaço e tempo. Há inclusive um avanço temporal, logo após o rompimento entre Adèle e Emma, que percebemos sutilmente, simplesmente pela aparência diferente de Adèle - que num novo corte de cabelo passa a dar impressão de mais velha, e pelo fato que agora ela já está trabalhando como professora, o que fazia parte apenas de seus planos no início do filme. Apenas quando ela e Emma conversam num bar, o lapso de 3 anos fica explícito. Há outras sacadas notáveis do diretor. Os detalhes de objetos de cena em azul (como o vestido de Adèle) passam a aparecer a partir do momento em que Emma deixa de pintar o cabelo, e quando a paixão entre as duas começa a esfriar e entrar em crise, revelando que a cor azul do cabelo de Emma passou a habitar a memória afetiva de Adéle.
Não é à toa que a atriz Exarchopoulus empresta seu nome à personagem principal do filme, Adèle. É difícil dizer se a personagem foi adaptada sob medida à atriz, ou se esta a incorporou totalmente, "transformando-se" na personagem, que transpira fragilidade e insegurança. O diretor pode não ter sido o tirano de que foi acusado pelas duas atrizes principais, mas seu método de filmar não deixa realmente espaço para os atores respirarem. Em praticamente todo o filme sua câmera enquadra os atores em primeiro plano, em closes. Assim, Adèle, a atriz principal, não pode em praticamente nenhuma cena deixar de expressar algo. Temos a impressão que seu rosto está a todo momento revelando algum sentimento, algum pensamento. Léa Seydoux, jovem atriz-fenômeno da França também merece todos os elogios. Mas como sua Emma é quase coadjuvante, é sua caracterização de personagem, mais que sua performance, que nos impressiona. Sua Emma demonstra uma certa masculinidade, mas de uma maneira totalmente sutil. A interpretação das 2 atinge o equilíbrio de forças perfeito na inesquecível cena do rompimento entre elas, quando Emma expulsa Adèle de sua casa. Você não verá em nenhum outro filme deste ano, ao menos, uma cena igualmente carregada de uma dramaticidade tão autêntica, genuína e brutal. Bastaria esta cena para catalogar Azul é a Cor Mais Quente como uma obra antológica.
Azul... é um filme moderno e único, despojado e sem artifícios, carregado de uma carga dramática intensa e que sem sombra de dúvidas possui a melhor interpretação do ano na composição impressionante da novata Adèle Exarchopoulus.