Os perdedores da História
por Renato FurtadoMancando, uma elegante e pequena mulher desce de um veículo Henry Ford de última geração, logo após deixar sua revista de moda de lado, estampada pela estrela do cinema mudo Clara Bow, do clássico Asas. Ela caminha sozinha por um campo aberto e espera, segurando o tempo com as mãos e à ponta de sua submetralhadora Thompson, uma arma que porta com a mesma naturalidade com que qualquer pessoa comum carregaria um guarda-chuva ou uma sacola de compras. A buzina soa no carro: a deixa dada por seu comparsa, seu amante, para que a mulher encha o céu de balas e a terra de cartuchos vazios. Não vemos o seu rosto e tampouco o do motorista até o ato final, mas nenhuma identificação objetiva é necessária para entender que estamos diante dos míticos Bonnie e Clyde.
Ao não evidenciar de imediato as faces de dois dos mais infames e icônicos bandidos de todos os tempos, o diretor John Lee Hancock (Fome de Poder) acertada e refinadamente estabelece que o lado mais importante da equação deste Estrada Sem Lei não são os ladrões de banco, mas aqueles que os caçaram e, eventualmente, os executaram em um tiroteio — filmado no local exato do evento real — que entrou para a história. Contudo, a competente produção, a detalhada direção de arte — que reconstitui os anos 1930 dos EUA com perfeição —, o sempre excelente Woody Harrelson e a condução eficiente de Hancock não diluem os impactos causados pela fraqueza capital desta obra: seu formulaico e previsível roteiro, que segue à risca as receitas de bolo pregadas pelos mais populares manuais de escrita cinematográfica.
Assinado por John Fusco (A Cabana), o script deste drama policial de investigação e perseguição pouco ou nada contribui à velha narrativa dos homens ultrapassados, vindos de outra época, dinossauros do passado que são obrigados a deixar o conforto de seus casulos fossilizados para tentar mudar o presente e auxiliar as gerações mais jovens — base, aliás, compartilhada pelo genial e muito mais bem resolvido Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood. Há uma espécie de tentativa de desconstrução dos mitos — os pistoleiros Frank Hamer (Kevin Costner) e Maney Gault (Harrelson) — por meio da exploração de suas humanidades, mas o frescor da empreitada é constantemente tolhido por diálogos que parecem ter sido extraídos de pelo menos uma dúzia de outros fracos filmes, com sua propensão inapelável ao didatismo e às frases de efeito.
A boa e velha máxima de que um longa só é tão bom quanto seu protagonista, verdade seja dita, apenas reforça os equívocos deste roteiro. Estrelado pelo limitado Costner, que frequentemente coloca a perder os esforços de Harrelson, Estrada Sem Lei sofre com um ator que rosna suas falas e parece estar desconfortável com seu papel a todos os instantes, com uma expressão de cansaço estampada no rosto — os tempos de Um Mundo Perfeito, também de Eastwood, não voltam mais — que prejudica a transmissão daquela que soa como principal mensagem de Hancock e Fusco: a fronteira que (nem sempre) separa a violência cometida com o aval estatal e aquela perpetrada às margens da legalidade é muito mais frágil e cinzenta do que pode supor a vã filosofia, ou até mesmo o senso comum do povo.
Tal comentário, contudo, é tecido de forma sutil demais frente ao outro importante eixo temático desta produção: o fascínio exercido por bandidos que eram vistos e idolatrados como Robin Hoods modernos — mais de 20 mil pessoas compareceram ao funeral de Bonnie Parker, como informam os créditos finais desta obra de longas 2h11 de duração — por uma população afetada pela pura e total descrença nas instituições e nas forças da lei. Ora, em uma época como a nossa, marcada por uma nova ascensão do banditismo e igualmente de instâncias paramilitares, que operam nas frestas e falhas dos Estados, bem como da atuação impactante dos veículos midiáticos, Estrada Sem Lei poderia alçar voos muito mais altos e consistentes, como fez, apesar da injusta comparação, o clássico Bonnie e Clyde, de Arthur Penn.
Por mais que trazer à baila o filme que abriu alas para o movimento da Nova Hollywood — grupo informal dos anos 1970 composto por rebeldes realizadores como Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão) e Martin Scorsese (Taxi Driver) que abalaram as estruturas dos estúdios hollywoodianos por dentro com referências trazidas do cinema de arte europeu — seja um ato impiedoso em relação às limitações de Estrada Sem Lei, é praticamente impossível e irresponsável não citar a obra-prima de Penn. Não que esta produção da Netflix pudesse causar impacto comparável ao de Uma Rajada de Balas, mas é certo que o filme de 1967 atingiu um patamar de destaque na história do cinema, para além de seu uso artístico e criativo do sangue, porque Penn soube dar estofo psicológico à sua trama e aos seus personagens.
Na releitura recente da história dos bandidos mais famosos dos Estados Unidos, é possível constatar alguns poucos lampejos de refinamento nesta direção psicológica quando Harrelson assume as rédeas, conferindo gravidade e arrependimento às decisões pregressas de seu personagem. Aliada à forte performance do indicado ao Oscar por Três Anúncios para um Crime, é finalmente a direção de Hancock, apesar dos pesares, que faz Estrada Sem Lei funcionar. Sim, o cineasta é um realizador convencional, balizado pelos vocábulos mais simples e objetivos da linguagem cinematográfica. Entretanto, ele não só cria algumas sequências interessantes — como a da perseguição da tempestade de poeira, que ecoa uma cena de Sniper Americano, outro de Eastwood —, como também entende muito bem o mundo do longa.
Nascido no Texas, Hancock parece estar se especializando em comandar histórias interioranas que, por força do destino, extrapolaram os limites de suas próprias potencialidades e ganharam manchetes nacionais. Por meio desta familiaridade contextual, ultrapassam-se as barreiras impostas por Fusco e Costner, e Harrelson torna-se um crucial ponto de apoio — do mesmo modo, aliás, como Michael Keaton é a pedra de sustentação de Fome de Poder. Assim, se este original Netflix funciona, é por causa do ator e de Hancock, acompanhados pelas suficientes interpretações coadjuvantes de Kathy Bates, John Carroll Lynch e Thomas Mann. Se não fosse por sua preferência pelo espetáculo e pela ação, o cansativo Estrada Sem Lei poderia ir mais longe: bastaria focar mais no aspecto humano destes dois perdedores da História.