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    Testemunha 4
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Testemunha 4

    Arte é profissão

    por Bruno Carmelo

    Testemunha 4 é um documentário simples, destes feitos com grandes ideias e pequena produção. O diretor Marcelo Grabowsky, munido de uma câmera digital, propôs a um grupo de atores encenarem a longa peça O Interrogatório, de Peter Weiss, várias vezes seguidas, durante 24 horas ininterruptas. Seu objeto de estudo principal é Carla Ribas, que interpreta uma vítima dos campos de concentração em Auschwitz.

    Como um cientista em laboratório, o diretor analisa como seu elemento de pesquisa se transforma ao longo do tempo. O cansaço, o sono, a fome e a alta carga emocional do texto influenciam na atuação de Ribas, que vai modificando seu corpo, suas expressões e a composição do próprio personagem. Mas longe de limitar seu filme a um jogo dos sete erros (do tipo "veja como os diálogos são ditos de maneiras diferentes a cada vez"), o diretor vai além e começa a desconstruir tanto a intérprete quanto o mecanismo da atividade artística.

    No início de Testemunha 4, o espectador é jogado diretamente na peça. Ribas está em cena, chorando, gritando. A atriz não é nada sutil, e faz de sua personagem um retrato de catarse e desespero. Para um filme que pretende justamente analisar a evolução dos sentimentos e da representação, ela é o objeto de análise perfeito. Como manter um nível de intensidade tão alto, interpretação após interpretação? Quantas lágrimas, quanto grito ela é capaz de produzir?

    Até a última cena, nada é explicado, não há depoimentos. A única indicação vem com os horários, inscritos silenciosamente na tela preta, indicando a passagem do tempo. O diretor limita-se a colocar sua câmera em posições diferentes, acompanhando cada movimento das mãos, do rosto. Sua lente teleobjetiva observa a atriz de longe, instaurando um jogo curioso: ele não se aproxima de Ribas, mas ela está consciente de estar sendo filmada. Mesmo durante o banho ou as rápidas refeições, a imagem está presente. É intenso o momento em que, cansada desta presença invasiva, a atriz fecha a porta, com força, na cara da câmera.

    Aos poucos, através de uma montagem inteligente, capaz de dar ritmo aos diálogos repetidos, o espectador começa a perceber o desaparecimento do personagem, e a aparição da atriz. Ela perde a concentração por causa do cansaço, não consegue mais chorar, e troca a tristeza da personagem pela irritação. A peça ganha novos contornos, inclusive nos momentos em que não há público - de madrugada, por exemplo.

    Testemunha 4 acaba sendo um grande exercício para os atores, que aceitam expor com humildade os limites de sua própria arte. O mesmo vale para Grabowsky, que também permaneceu colado ao personagem 24 horas seguidas. O cinema e o teatro são expostos simultaneamente como profissão e como material humano, com atenção às técnicas respectivas de cada um. Existe um grande respeito pela encenação (teatral) e pela representação (cinematográfica) como profissões, não apenas como arte. Ribas e o resto do elenco tornam-se, durante o exercício proposto, funcionários escravizados pelo ofício, como operários em uma usina. É interessante – e raro – enxergar a arte pelo prisma da atividade profissional.

    Assim, na única cena em que a câmera abandona o teatro, vamos à praia com Carla Ribas, após a conclusão do martírio cênico. Ela vibra, pula, comemora com os colegas. O único som presente é o das ondas do mar. O diretor guarda até o último instante sua câmera colada na personagem, em suas expressões, finalmente espontâneas. Nesta hora, o cinema abandona seu apaixonante estudo do teatro para se afirmar como arte independente, com um cenário e uma escolha de som próprios. Enquanto desconstruiu Carla Ribas, o cineasta construiu seu ponto de vista, e no final pôde ser tão livre quanto a pobre atriz, cansada e contente.

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