Querido gravador
por Francisco RussoExistem filmes cuja atuação é tão luminosa que ofusca todo o resto. É o caso de Hermila Guedes em Era uma Vez Eu, Verônica. Por mais que Marcelo Gomes tenha sido bem sucedido na direção, é difícil imaginar outra atriz interpretando com tamanha competência esta personagem difícil, devido à naturalidade da própria trama e suas variáveis de personalidade. Apenas isto já bastaria para assistir ao filme, mas ele oferece mais.
A história é focada em Verônica, uma jovem que ainda mora com o pai (W.J. Solha, muito bem) e acaba de se formar em medicina. Ela está prestes a iniciar residência em um hospital público e, com o dia a dia, passa a ter dúvidas naturais da profissão, decorrentes do peso emocional que os pacientes lhe trazem. Somado a isto existe a preocupação com a saúde do pai e questões existenciais que todos passam em algum momento da vida. É esta a profissão que quero seguir? Conseguirei me sustentar? Serei feliz? São perguntas que Verônica faz a si mesma, tendo como confessionário um simples gravador. É ele que a ouve, servindo como uma espécie de autoterapia ao lidar com as dores da vida.
Além disto, Verônica é o arquétipo da mulher moderna, que precisa dividir o tempo entre a casa e o trabalho, sem deixar de lado o prazer pessoal. Este último ponto surge a partir de tórridas cenas de sexo, que servem de válvula de escape para que abstraia dos problemas do dia a dia. Há ainda mais uma particularidade dos dias atuais: Verônica não busca amor, mas sexo. Ela está interessada apenas em saciar a libido, não em um relacionamento sério.
É neste contraste que Hermila Guedes brilha. Sua Verônica é de uma doçura impressionante no trato com o pai e seus pacientes, ao mesmo tempo que vira um furacão quando se deixa levar pela libido. E, neste caso, a única regra que estipula a quem ela pertence é sua própria vontade. Trata-se da quebra da tradicional imagem da mocinha romântica, sendo substituída por uma versão contemporânea que poderia morar em qualquer cidade brasileira. Estes dois lados impressionam pela transformação sofrida por Hermila, mas são perfeitamente verossímeis dentro de uma mesma personagem. É esta junção coesa que faz com que, pouco a pouco, o público sinta uma simpatia natural por Verônica e se impressione cada vez mais com sua intérprete.
Entretanto, Era uma Vez Eu, Verônica não é apenas Hermila Guedes. Marcelo Gomes faz um belo trabalho na composição da história como um todo, tendo como destaque o olhar carinhoso que dá à cidade de Recife. São belíssimas as cenas em que Verônica é vista boiando dentro d'água, com a cidade ao fundo. O diretor também acerta ao não esconder do público as cenas de sexo, parte importante da personalidade da personagem principal. Por mais que haja cenas de nudez frontal, elas estão inseridas no contexto da trama e não são gratuitas.
Bem dirigido e com um elenco coeso, Era uma Vez Eu, Verônica impressiona também pela linha naturalista na condução da história, sem grandes reviravoltas. Trata-se do olhar sobre um momento na vida de Verônica, refletindo seus sentimentos e pensamentos. Um belo e ousado filme, que tem a felicidade de contar com uma atuação luminosa de Hermila Guedes. Sem ela, com certeza seria um filme pior.