Capitães da Areia: Um livro sem reinvenção
Na noite misteriosa das macumbas os atabaques soam como clarins de guerra.
(Jorge Amado
Comparar um filme a um livro é, geralmente, uma crueldade contra o primeiro. Neste caso não é diferente. Capitães da Areia, obra maravilhosa do gigante Jorge Amado, tentou-se traduzi-la para o cinema. Cecília Amado, neta do autor, lançou-se à difícil missão: parafrasear a poesia viva das palavras do avô. Uma infelicidade, indubitavelmente.
O livro, desde as primeiras páginas, nas notícias acerca do grupo de meninos de rua, é poderoso em suas palavras. Amado, em sua capacidade de fazer refletir com sensibilidade a causa dos marginalizados e de fazer sentir as lágrimas secando nos olhos do Sem-Pernas, é sobrenatural. O tendencioso da imprensa, o cruel das autoridades, a falta mesma de afeto abatendo os Capitães, tudo nos afeta na escrita do baiano.
Além disso, entre o branco da página e o preto da tinta, está o colorido da Bahia. As imagens de litoral, os bares frequentados pelos meninos, o Gantois, a feira. Interessante observar que a nitidez no texto parece, o tempo todo, sobrepor-se à imagem em si, do filme. Conquanto em Cecília se veja tudo na facilidade que salta aos olhos, em Amado cada sintagma parece peneirar-se à retina. Como se o escritor pintasse, no papel, as cenas.
Mesmo que se trate de tentar promover novamente o clássico, a cineasta não obtém sucesso. Talvez seu grande acerto tenha sido dar oportunidade a meninos oriundos do abandono. A atuação, lógico, não é de superstars, mas é extremamente válida. Iniciativas como essa não deveriam ser tão raras. Entretanto, não é suficiente para fazer brilhar o trabalho. Nem o romance de Pedro Bala e Dora é, nele, capaz de captar a atenção; no livro tudo capta a atenção e o coração.
Há, sem dúvida, grandes clássicos transportados para a telona com maestria. Ainda assim, nunca terão o poder de palavra. Na solidão do livro, quando nos volvemos a nós, a crítica e a reflexão nos alcançam. Nas imagens fugidias, no jogo de luzes e falas, nem sempre. Capitães de Areia é um fenômeno em poucas páginas que devem ser lidas e relidas. Escapar delas para qualquer reinterpretação é um pecado que não se pode purgar.