Adaptação ao cinema desconstrói a música para deixá-la mais trágica e atual
Desta vez João não quer falar com o presidente, para ajudar "toda essa gente" que sofre. Faroeste Caboclo, a adaptação ao cinema da canção da Legião Urbana, não tem essa ambição, essa vocação midiática. Ao contrário de Somos Tão Jovens, em que Renato Russo sempre tem espectadores quando canta, o João de Santo Cristo do filme não é visto pelas "câmeras de TV", nem pelo "povo a aplaudir".
Essa opção por um registro menos espetacular (ou espetaculoso) do que a letra da música sugeria é um dos acertos do diretor estreante René Sampaio. João, o sertanejo da cidade de Santo Cristo que no fim dos anos 1970 encontra em Brasília o amor e a morte, não tem como dividir com os outros sua sombria predestinação. É um herói solitário como os bons tipos condenados dos westerns, e ao tornar mais introspectiva essa jornada, ao negar a audiência da "Via Crúcis que virou circo", o filme deixa mais trágico o texto de "Faroeste Caboclo".
Essa opção por seguir um tom abaixo da canção (há discursos no filme, mas nada de santidades) permite que o espectador perceba os fatores que tornam Brasília um lugar alienante - a cidade do modernismo brutalista de Oscar Niemeyer cujos espaços de exclusão consumam o isolamento de João. A quadra onde mora Maria Lúcia (Ísis Valverde) é um desses lugares, e João consegue com algum malabarismo (a escalada é uma boa sacada do filme) burlar a distância que o separa da menina. Mas basta voltarmos à Ceilândia - cenário setentista que a produção, ao filmar em Jardim ABC, bairro mais afastado do Plano Piloto, consegue emular bem - para entender que João não pertence a Brasília, porque ninguém pertence a Brasília de fato.
Sampaio faz com competência essas escolhas que potencializam a história de João, e filma o esperado duelo contra Jeremias (Felipe Abib) com a gramática visual que se tornou regra nos faroestes depois de Sérgio Leone, cortando do plano aberto direto para os close-ups. O grande trunfo de Faroeste Caboclo, porém, é a escolha de Fabrício Boliveira para interpretar o protagonista. Como a canção não é precisa sobre a etnia (diz apenas que João sofria preconceito por sua cor), seria muito fácil, e até lógico do ponto de vista do mercado, colocar um ator mulato como herói, uma forma de atingir um público maior da nação "parda" brasileira.
Boliveira, porém, é inconfundivelmente negro. E Sampaio não se furta a enquadrar o ator na contraluz, contra aquele sol seco do Cerrado, que vez ou outra torna o rosto de Boliveira uma mancha na tela. Se o filme conta a história de como João de Santo Cristo foi anulado pelo Sistema (as capas de jornal na frente do rosto, a História acima do indivíduo, outra boa sacada), a fotografia completa a equação: sombra de dia, vulto de noite.
Faroeste Caboclo não é um filme perfeito, mas serve bem para nos lembrar de questões raciais que o Brasil - no eterno atropelo de querer que o nosso prometido Futuro chegue logo; atropelo do qual Brasília sempre foi símbolo - finge que não existem mais. Pois não é por acaso que o filme de Sampaio deixa de fazer referências à ditadura (nada de generais ou "bombas em bancas de jornal"): mais do que um Estado de Sítio, o Brasil do filme é o Brasil do presente.