A cisão do eu: a traição como caminho para o re-conhecimento
O filme Malévola roteirizado por Linda Woolverton e dirigido por Robert Stromberg reconta a historia da bela adormecida. Reconta a historia e oferece outra face. O drama da megera é agora apresentado do seu ponto de visão e sensação. A dicotomia já é anunciada no inicio, quando o espaço é subdividido em dois: dois reinos, um habitado pelos humanos, onde há hierarquia, com relações de poder fomentadas por demandas pessoais, e portanto falsas necessidades no que tangue ao coletivo. O outro reino é habitado por elementos da natureza, organizado de forma mais horizontal, onde cada um ocupa o lugar que lhe é devido, cujas necessidades são regidas pela própria fisiologia e providas portanto, pela própria natureza que as gerou. Não há um rei no comando, embora existam lideres.
É neste cenário que se inicia o primeiro contato entre estes dois mundos: a líder protetora do universo mágico se encontra, e se encanta, com um humano do mundo “real”. Este laço (de amor e ódio) que vai durar por toda a jornada do filme, até o seu trágico final, se apresenta inconcretizavel para o humano, cuja visão embotada pela ambição, o leva a trair a si mesmo: perde-se o contato com o sua guiança interna, não há mais caminho para o coração, traindo em si o seu sagrado. Esta é a primeira traição.
A segunda traição é o fato: motivado por uma falsa necessidade (minha crença traiçoeira) concretizo esta traição no outro, o traído. O traído, ao se perceber traído, perde uma parte de si. Ele não se encontra mais ali, deslocando este pedaço “perdido” para um outro fora de si.
Nesta historia a mulher traída perde as suas asas, mas não o seu poder: ela escolhe asas substitutas, num outro masculino, agora subserviente. Neste ponto, a historia poderia seguir outro rumo caso ela decidisse não tomar a traição para si, e ir em busca de recuperar sua asa perdida (ou partida). Há aqui outra traição: quando a traição contamina, e o traído termina por trair-se.
Assim Malévola desconectada com a sua alegria, confiança e inocência, em suma, traindo a sua essência de fada, transforma seu reino e sua vida em função de estabelecer distinções: proteger o reino que não e mais feliz, mas precisa ser seguro, e assegurar que a dor que sofreu seja devolvida na mesma moeda: lança um feitiço sobre a filha do rei. Lançar um feitiço sobre o fruto da traição é a quarta traição, pois como veremos mais tarde, este fruto representa a própria Malévola no seu estado inicial: pura, inocente e confiante. A Aurora de um novo dia, o avesso do avesso, mas ainda sem asas...
Aurora cresce sob o olhar de Malévola. Às vezes, tal qual a historia de Édipo, quanto mais fugimos do nosso destino, mais dele nos aproximamos. Assim, Malévola precisa “olhar” para Aurora, olhar POR Aurora, e então o vinculo começa a se reestabelecer. O vinculo consigo mesma, com sua criança perdida.
Mas os nossos atos não se apagam, e aquilo que se precipitou na matéria sob a forma de palavra, na matéria precisa se resolver: o feitiço simplesmente não pode ser desfeito assim como o tempo não volta atrás.
Então entra aqui um ponto ícone para uma boa resolução: qual o real significado do feitiço? Isto significa, o que Malévola não mais acreditava ser possível nela? Do que ela não se via mais possuidora? Que asas ela precisava recuperar nela mesma?
Como de costume nos filmes de contos de fada, o primeiro traidor sempre tem um final trágico, imbuído em sua própria loucura. Mas talvez até isto pudesse ter sido diferente...ok, não vamos exigir tanto.
Então Aurora, sua criança interna agora desperta novamente, pôde enfim reconectá-la à suas asas, reintegrando seu ser. A traição foi desfeita. E o fruto da traição, agora ressignificado, reinará no mundo dos seres alados.