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    Queer
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Queer

    Esqueça James Bond! Daniel Craig encontra seu melhor trabalho no ousado e melancólico Queer

    por Diego Souza Carlos

    O desejo é um dos principais motores da sétima arte. Normalmente vinculado ao pulso sexual, o conceito na verdade se traduz em diferentes facetas. Seja através de uma garota manifestando seu lado mais sombrio para se tornar uma estrela de cinema (Maxxxine) ou em uma jovem enferma que caminha com seu gato durante uma invasão alienígena, apenas para se sentir viva uma última vez (Um Lugar Silencioso: Dia Um). Os caminhos narrativos são múltiplos.

    Ao fim, entendemos que a extensão do desejo sempre vem daquilo que nos move. Isso nos leva diretamente ao amor, talvez uma das principais energias que nos faz seguir adiante - e Queer, adaptação da obra homônima de William Burroughs, chega para nos desafiar sobre determinadas convenções através dos olhos e vontades de Luca Guadagnino.

    Lee está perdido entre muitos estímulos de uma boemia efervescente dos anos 1950. Na Cidade do México, onde se encontra, o personagem de Daniel Craig é tomado por impulsos, desejos e, em meio às tribulações muito bem estilizadas do cineasta, se choca com algo que o faz querer transcender.

    “Eu não sou queer, apenas estou desencarnando”

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    Algo dito com certa frequência durante o longa brinca com a existência dos personagens. “Eu não sou queer, apenas estou desencarnando” surge em momentos emblemáticos apenas para nos lembrar de como responder ao desejo corresponde a uma batalha para cada um deles. A homossexualidade, embora seja um tabu para a época da trama, é a prática, o guia, a repressão, o medo e o norte de todas as interações.

    Diferente de Rivais, em que o cineasta destaca movimentos e texturas de pele de maneira contínua, sempre a fim de construir uma tensão cadenciada pelo som, aqui esses closes se direcionam a momentos específicos - poucos, belos e precisos. Trechos em que já esperamos uma direção íntima e ousada, onde os protagonistas se encontram nos lençóis descobrindo as extensões um do outro.

    Inclusive, é sempre um prazer (se me permitem o trocadilho) encontrar uma boa direção em cenas eróticas como as vistas aqui. Há uma certa dificuldade em não deixar tais encontros em tela um tanto artificiais, principalmente quando são personagens do mesmo sexo. Às vezes falta veracidade, às vezes é tudo muito plástico.

    Aqui, Guadagnino consegue manifestar o interesse entre Lee e Eugene de maneira vívida sem apelos. Ainda que não sejam sequências revolucionárias, elas são efetivas em transpassar a atmosfera externa às quatro paredes, local em que qualquer repressão pode ser vencida.

    Capítulos que nos levam do paraíso à consolação

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    A adaptação brilha por conseguir expressar de maneira criativa cada anseio, brincando com o surrealismo e aproveitando a direção de fotografia de Sayombhu Mukdeeprom, que trabalhou ao lado do realizador em Me Chame Pelo Seu Nome, Suspiria e o próprio Rivais. A colaboração entre os diretores chega a uma espécie de ápice ao dar vida a este sonho febril que se estabelece principalmente no primeiro ato do longa.

    Queer é uma obra de arte com muito a dizer. E talvez esse seja um aspecto que o torne, por vezes, desconjuntado. A divisão em três capítulos e um epílogo demarca ainda mais a diferença entre gêneros e ritmos em que a narrativa se apega. Se no primeiro ato temos um romance erótico digno de uma boa literatura clássica, o segundo nos coloca em um filme exploração e viagem. Já no último, há uma sensação de que estamos assistindo a um experimento sensorial dentro de uma aventura selvagem.

    Pitadas de comédia, horror, suspense e romance enriquecem o filme, de fato. Mas dentro de uma história como essa, que também adiciona elementos surreais à equação, há problemas de ritmo que podem perder o público em determinados pontos. Com a junção de acontecimentos e decisões criativas, o realizador faz quase uma pequena epopeia visual através de um período curto da vida de seu protagonista. Com a impressão de que havia mais para se contar, o andamento do filme enfrenta altos e baixos.

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    Evocando novamente o filme estrelado por Zendaya, não poderia deixar de mencionar a sonoridade, uma das grandes marcas de Luca Guadagnino. Neste experimento cinematográfico, o diretor inclui uma trilha sonora anacrônica na jornada dos protagonistas. Há trechos dignos de videoclipes de grandes astros, um recurso para demonstrar a eletricidade de olhares e ações, embalados por bandas como Nirvana, New Order, Prince ou Verdena.

    Uma vez que se estabelece o marco temporal desta narrativa, é natural que algumas pessoas se apeguem à dissonância entre contexto narrativo e as faixas tocadas. No entanto, dificilmente o público deve resistir a passagens que elevam as vontades do realizador em colocar seus personagens diante de suas maiores dores, desejos e abstrações enquanto as cordas de "Come As You Are" enchem os ouvidos.

    Esqueça James Bond

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    A memória recente do público geral quanto a Daniel Craig é sua interpretação como James Bond. Existem também os dois filmes da franquia Entre Facas e Segredos, mas 007 é mais popular e universal. Em Queer, o ator abandona qualquer traço do espião britânico para se entregar de corpo e alma à narrativa. Sem soar caricato, embora chegue próximo em determinados momentos, o artista apresenta um de seus melhores trabalhos.

    Lee é um personagem complexo, que sabe muito do que quer ao mesmo tempo em que não consegue vislumbrar nenhum horizonte possível além do agora. É justamente por isso que o seu encontro com Eugene o deixa tão desnorteado. É curioso ver como a dualidade entre o que acreditamos ser e o que de fato somos se traduz na forma como o boêmio se comporta.

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    Esse embate não está apenas na forma impulsiva como ele se entrega a este relacionamento, mas também é retratada por Guadagnino através de projeções corporais que ilustram como a repressão age sobre ele. É o querer que nunca se concretiza, uma angústia crescente em um mundo de falsas liberdades. A forma à sociedade que tolera pessoas queer e faz estas pessoas viverem sob determinadas regras implícitas também está ali a cada passo tropeço do protagonista - do vício em drogas à obsessão com Eugene.

    É difícil descrever Queer de maneira objetiva, pois ele apresenta um pouco de tudo o que uma vida requer: emoções, amores, o gozo, a fragilidade da vida e uma enxurrada de erros, acertos e excessos. Embora tenha seus problemas de ritmo, a narrativa nos lembra constantemente sobre como o amor e todo o desejo que nos movimenta são coisas tão maravilhosas quanto dolorosas - e, ainda assim, cada segundo pode valer a pena.

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