O artista precisa de carinho
por Bruno CarmeloPara quem se preocupava com uma biografia sobre Elton John produzida pelo próprio Elton John, pode ficar tranquilo: embora o filme ressalte o talento do cantor, ele está longe de se reduzir a um elogio edulcorado. Para quem temia um filme asséptico ao estilo de Bohemian Rhapsody (leia-se: atenuando a homossexualidade e as drogas para se tornar palatável ao público conservador), não há motivo para preocupação, pois o diretor Dexter Fletcher busca as maneiras mais criativas de representar o vício em drogas e o relacionamento com homens, tão clara quanto sensivelmente. Para quem temia uma simples enumeração de fatos mais marcantes da vida, é bom saber que a biografia oferece muito mais do que se descobriria numa página do Wikipédia.
Feitas as precauções, resta compreender o filme pelo que ele é, no caso, uma extravagância kitsch destinada a investigar a carreira de Elton John (Taron Egerton) através da psicologia. O roteiro dedica uma parte importante de seu discurso a sustentar que todos os problemas e glórias na vida do protagonista se devem à falta de amor e à busca pelo mesmo. O talento musical teria surgido da necessidade de provar seu valor ao pai homofóbico, a dependência de substâncias químicas seria fruto direto do relacionamento fracassado com seu empresário (Richard Madden), as mais belas apresentações constituiriam uma maneira de canalizar a tristeza, a raiva ou a depressão.
Por um lado, o discurso sobre a frustração como principal motor da criação artística corresponde a uma romantização nociva da atividade criativa. Isso impede tanto que se perceba o profissional da arte como alguém capaz de produzir dentro de uma estrutura sadia quanto que se valorize o criador enquanto indivíduo comum, dotado de uma expressão artística ao alcance de todos. O artista é percebido como o diferente, o excêntrico, aquele cujo talento representa uma recompensa às dores que vive, e para quem a busca por prazeres efêmeros (droga, álcool, sexo fácil) representa uma compensação óbvia de carências afetivas. O roteiro de Lee Hall não consegue escapar ao psicologismo superficial que separa o artista do resto da comunidade.
Por outro lado, ao abraçar os traumas, os excessos e as inseguranças de Elton John, o diretor contamina seu filme com uma energia vibrante, traduzindo o estilo de seu personagem em escolhas estéticas apropriadas. Rocketman é um filme colorido, repleto de recursos cafonas, exagerados, barulhentos, assim como foi Elton no início da carreira. Este não é apenas um “drama com música”, a exemplo de Bohemian Rhapsody, e sim um musical no sentido estrito do termo, devido à inclusão de numerosas cenas em que os personagens cantam e dançam, rompendo com o naturalismo para abraçar a fantasia. As cenas musicais constituem o ponto mais forte do projeto por sua criatividade e pela bela maneira como reinterpretam canções de Elton John, ora transformando sensivelmente as letras originais, ora colocando-as na boca de pessoas importantes que conviveram com o artista.
O projeto deve muito de seu sucesso ao talento do ator principal. Em poucos anos, Targon Egerton tem se mostrado um dos atores mais versáteis de Hollywood, demonstrando igual desenvoltura no drama, na comédia, na ação, com talento para a dança e o canto. Ele entrega um ótimo resultado tanto nas cenas catárticas quanto nos instantes intimistas. Infelizmente, ele se encontra diante de Bryce Dallas Howard, uma atriz que perde facilmente os limites quando mal dirigida, e neste caso recai na caricatura da mãe histérica. Em paralelo, Richard Madden transforma-se no vilão novelesco com uma rapidez espantosa, o que sublinha um sintoma marcante deste filme, que funciona muito melhor quanto lida com a psicologia do que na representação da sociedade e da família. Enquanto a investigação de sentimentos soa verossímil, a representação dos pais malvados e dos amantes insensíveis se torna novelesca.
Além disso, o roteiro não escapa a alguns clichês comuns às cinebiografias, a exemplo dos diálogos engrandecedores – uma cena importante entre Egerton e Jamie Bell é composta inteiramente por frases de efeito. Ao menos, percebe-se um esforço notável para transmitir a sexualidade de modo multifacetado e frontal, sem demonstrar vergonha da orientação de Elton John. De modo geral, Rocketman merece ser reconhecido pela tentativa de romper com os códigos rígidos que têm prejudicado a maior parte das cinebiografias. Fletcher opta por um estilo pouco subversivo dentro do cinema como um todo, porém consideravelmente ousado para o circuito comercial.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.