Falar sobre a importância de Blade Runner para o cinema moderno é como chover no molhado – uma “chuva” tão intensa quanto o tempo chuvoso da Los Angeles onde se passa a história do original e desta continuação, que ao contrário da maioria dos filmes que tentam “resgatar” obras do passado, funciona imensamente bem como sequência e/ou expansão do universo filosófico riquíssimo da produção inspirada em um livro do mestre da ficção científica, Philip K. Dick.
Blade Runner (o original) era um filme disposto a trazer uma mensagem bela e poética sobre o existencialismo humano – o velho argumento do “ser ou não ser”, misturado às possibilidades que o futuro poderia oferecer a humanidade. Com um visual, temas e metáforas absurdamente criativas, Ridley Scott fez de seu longa um divisor de águas para a arte do cinema com seu trabalho na direção, ajudado por inovações e criatividades com relação a designer de produção, sonorização e, principalmente, fotografia – algo que inspirou inúmeros outros filmes até hoje – dado o seu poder de atingir os sentimentos e percepções dos espectadores com suas belíssimas imagens, que traduziam o clima inspirado nos clássicos filmes noir da Hollywood entre os anos 30 e 50 – Blade Runner era, portanto, um filme policial no futuro – bem longe de ser um mero filme de ação, afinal, com seu ritmo mais lento, conseguia expressar sentimentos que nenhuma obra “acelerada” poderia exprimir.
Tamanho virtuosismo e inspiração logo transformaram aquele filme em um clássico cult – que, curiosamente, foi um fracasso de bilheteria, que ganhou repercussão durante os anos seguintes – principalmente pelas várias edições e “versões definitivas” que Ridley Scott lançou ao longo dos anos – evidentemente, sempre se imaginou o destino dos personagens de Harrison Ford e Sean Young após os eventos do filme – mas, obviamente, muitos ficariam receosos com o que poderia resultar uma sequência de um filme tão vital para o cinema.
Passados 35 anos, eis que temos a resposta – e (acredito não estar exagerando em dizer), o resultado não poderia ser melhor. Aliado a direção de um dos diretores mais expressivos em Hollywood nos últimos anos, Denis Villeneuve (A Chegada, Sicario, O Homem Duplicado), do roteiro bem acabado de Hampton Fancher (também autor do roteiro do filme original) e Michael Green e da fotografia magnifica do gênio Roger Deakins, Blade Runner 2049 é uma experiência absolutamente encantadora e fascinante – ao ser uma ficção científica que realmente propõe discutir de forma séria os problemas e situações que podem influenciar a vida dos seres humanos no futuro – seja a sua simples vontade de existir (e por que existir) até sua vontade de poder criar e controlar tudo o que quiser na vida.
Villeneuve incrementa o universo de possibilidades visto no filme anterior – dizer que já é um clássico talvez seja muito cedo, mas é evidente que 2049 é um filme promissor e poderoso – que vai do intimo mais profundo de seus personagens até um consentimento sobre toda a raça humana – que soara absurdamente real e atual para este mundo nosso de 2017, onde seres humanos continuam brigando e morrendo por suas diferenças de origens, vontades e ambições.
E o mais fascinante de tudo é a fidelidade e respeito pelo original, já que existe um incrível cuidado em conceber cada momento, cada cenário, cada ponto de luz e outros detalhes visuais – a direção de arte traz uma evolução natural vista no mundo de 2019 do primeiro filme – repare como é mantido o pé naquele universo quando o filme apresenta nas ruas de Los Angeles as propagandas da Atari, Pan-Am ou produtos da antiga União Soviética – coisas que não existem no nosso mundo, mas existiam no universo de Blade Runner. O desenho de produção inteiro da produção resgata com muito brilho todo o mundo mostrado no filme original – o que vai do modelo de carro de K ou da compactação que vive em seu apartamento até o edifício de Wallace, suntuoso e aparentemente com uma iluminação que exala uma certa “falsidade” de calor, já que o mundo de 2049 é frio – literalmente e não literalmente, de fato – o que nós faz notar novamente a genialidade do trabalho de fotografia.
Esse enfoque maior no universo desta história possibilita uma visão de um futuro distópico absolutamente verossímil – não é de se espantar que a grande maioria da população se mudou para as colônias interplanetárias tão mencionadas no filme passado ou de como a primeira vista de Los Angeles agora não deixa de lembrar uma grande e interminável favela – aglomerando ainda mais gente de diferentes etnias – o designer de produção é extremamente rico em criar isso, assim como a cidade San Diego, que virou praticamente um lixão ou Las Vegas – com inúmeras estatuas espalhadas entre escombros – provavelmente destruídas por algum conflito nuclear – se contrapondo com a natureza do Deckard de Harrison Ford.
O trabalho de som se mostra tão importante quanto no original, ao sugerir que os ruídos a volta de Leto e Ford funcionem como um tipo de trilha de tensão e suspense – a trilha-sonora assinada por Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer é capaz de manter de forma coerente o clima criado na trilha-sonora genial e antológica de Vangelis – é evidente que não é tão marcante ou bem feita – aliás, certos excessos em algumas partes são as únicas falhas do filme. Mas as composições novas funcional muito bem com os temas de Joi e das memórias de K – ajudando ainda mais a criar a atmosfera que chega a quase sufocar de tão intimista.
Aliás, para expressar o estado emocional dos personagens, Villeneuve e Roger Deakins são extremamente felizes em acompanhar os tons de luzes – algo que o primeiro filme era genial – conforme visto na escura (quase preto e branca) cena onde K luta com Stapper – ou quando as lembranças de um passado feliz e triste passam pela mente de Deckard enquanto conversa com o personagem de Jared Leto em uma sala com iluminação que oscila entre claro e escuro. A paleta de cores do longa é extremamente rica e intensa, já que através de planos longos e movimentos de câmera suaves, deixam os sentimentos em evidência de forma muito natural – nos trazendo ao tom intimista e melancólico de todos os personagens.
E falo todos porque o roteiro realmente confere características únicas para cada um deles – apoiado por um elenco excepcional, Blade Runner 2049 conta com novos rostos que impressionam tanto quanto o elenco incrível do original de 82 – temos a androide Luv de Sylvia Hoeks, que tem uma incrível obsessão por ser perfeita, o Wallace de Jared Leto, que lembra uma versão mais sombria e perturbada do Dr. Tyrell – evocando uma necessidade que muitas corporações parecem ter em querer controlar a humanidade – diante de diálogos reflexivos, é interessante Leto se dar bem em um papel depois do desastre de seu Coringa em Esquadrão Suicida. Passando pela sensibilidade da “companheira-holográfica” de Ana de Armas ou da arrogância e frieza da Tenente Joshi da ótima Robin Wright, ressaltando algo que o filme passado já dizia, sobre o fato dos androides serem mais humanos do que os próprios humanos – inclusive, quando, em certo momento, ela sugere se relacionar sexualmente com K, provavelmente para suprir sua solidão – o que nos traz aos personagens de Ford e Gosling, que, como eram de se esperar, são o coração do filme – o primeiro, aliás, confere uma atuação surpreendentemente emocional, talvez uma de suas melhores no últimos anos, sendo que o segundo, se mostra como um excepcional ator, por conseguir mostrar de forma tão introspectiva as emoções que seu personagem parece evitar ter na maior parte do tempo.
Sendo assim, o ponto de partida é o próprio agente K da policia de Los Angeles, que é um caçador de androides. No ano de 2049, os antigos androides da geração Nexus 6 da Corporação Tyrell foram eliminados ou proibidos, sendo substituídos pelos reformulados androides construídos pela empresa do cientista Wallace (Leto), que pretende deixar suas criações cada vez mais idênticas aos homens – mas, em meio a isso, grupos de antigos replicantes se escondem para sobreviver – e um deles (Bautista) acaba sendo interceptado por K, que, a partir dai, encontrará pistas para uma revelação que poderia mudar para sempre a vida de todos os habitantes da terra – tanto os humanos, quanto os replicantes – e acredito que só isso é possível de ser mencionado sem dar spoilers, já que existem várias reviravoltas pela frente.
ATENÇÃO! SPOILERS NOS PRÓXIMOS 7 PARÁGRAFOS!
Ao contrario da trama do filme original, logo de inicio descobrimos que o K de Gosling é um replicante – afinal, a humanidade realmente “evoluiu” de tal forma que coloca todos os novos replicantes para executarem todos os “trabalhos sujos” que o ser humano deveria fazer – e digo ao contrario obviamente pelo fato de que se o maior mistério do filme anterior era saber se Deckard era um androide ou não, aqui temos um personagem que de cara evidência todas as suas angustias – apesar de ser mais frio do que o personagem de Ford, K já demonstra rapidamente sua vontade em querer compensar sua solidão – como ao utilizar um tipo de software de realidade virtual, que traz para sua casa a projeção holográfica de uma mulher chamada Joi (a personagem de Ana de Armas, obvia referencia a “Joy”, “diversão” em inglês) em algo que lembra bastante o sistema operacional visto no filme de Spike Jonze, Ela – mas aqui não somente com a voz.
Após encontrar ossos enterrados próximos a casa do Sapper de Dave Bautista (em curta, mas marcante participação), K começa a se intrigar pelas descobertas que faz – afinal, constatasse que os restos de ossos eram de uma replicante que deu a luz a uma criança – algo que poderia marcar uma nova era para os replicantes, que seriam mais do que meros escravos para a humanidade – seriam, agora, seres com almas, capazes de terem um propósito em suas vidas, igualizando-se com os seres humanos – algo que a delegada que a Tenente Joshi, tentará impedir as pessoas de saber – como ela mesma diz, “diga que o muro (entre duas espécies diferentes) não existe e comece uma guerra ou mesmo um massacre” – provavelmente à sombra dos interesses das grandes corporações que parecem dominar o mundo visto em Blade Runner – o Wallace de Leto é uma exemplificação clara da vontade de alguns em querer ter um controle semelhante (ou igual) ao de Deus.
Criados a imagem e semelhança dos homens, os replicantes agora começam a querer lutar para saírem da escravidão imposta pelos humanos – mesmo eles não sendo maquinas, parece uma inversão de valores do que vimos em Matrix ou O Exterminador do Futuro. Daí temos a importância de K para todo o filme – uma criação dos seres humanos que tem os mesmos “defeitos” de uma pessoa comum – precisa de vícios (bebida), companheirismo (mesmo que não real) e motivos para seguir sua vida – K difere-se do Roy de Rutger Hauer, afinal, ele não quer apenas viver, mas quer ter um “papel no mundo”, assim como a grande maioria das pessoas.
Esse choque, brilhantemente ressaltado pelo roteiro, é uma das coisas mais tocantes do filme – e, falando sobre Roy, o paralelo feito na ultima cena de K com o personagem do filme original é uma das coisas mais belas já vista no cinema este ano – ainda mais ao som do clássico tema de Vangelis ao fundo – que se no filme anterior era triste por mostrar Roy morrendo com suas emoções e sensações que só ele conhecia, torna-se emocionante aqui por fazer K se sentir feliz (com uma expressão facial genial de Gosling) por ter morrido por uma boa causa – no caso, ter ajudado a causa dos replicantes, como mencionado por uma das lideres da suposta rebelião.
Ryan Gosling, inclusive, prova como é um ator completo, ao fazer de K um personagem marcante justamente por ser alguém que não consegue lidar com suas emoções – repare como ele traz a emoção de ter esperança de ser o filho gerado pela replicante – o que seria uma surpresa linda, afinal transformaria suas “memórias implantadas” em situações reais – mas, ao mostrar que isso não aconteceu, é impossível não lamentar que seu personagem seja realmente um androide “normal”, em vista da forma como demonstra sua decepção.
Revelando que a Rachel de Sean Young (que aparece perfeitamente rejuvenescida digitalmente) teve um filho com Deckard, a trama de 2049 vai ainda mais a fundo em seu tema – fazendo uma referencia a história bíblica de Raquel, uma mulher estéril, que conseguiu se tornar fértil – gerando o questionamento de que os androides poderiam ter almas, de fato – bem salientado pela forma como é (re) introduzida a paixão do personagem de Ford por Rachel – nesse ponto, é importante ressaltar a atuação de Harrison Ford – justamente por emocionar na cena onde tem um encontra uma “cópia” de Rachel.
Mas, afinal, este novo filme comprova se Deckard é um replicante? Villeneuve e os roteiristas são tão respeitosos com o material original, que deixam isto em aberto – mas ele tem mais do que quatro anos (o prazo de vida dos androides do primeiro filme), não é mesmo? Mas como dito por Wallace, Tyrell conseguiu fazer Rachel ter a capacidade de procriar e, aparentemente, o encontro dela com Deckard no original poderia ter sido algo programado – para fazer com que se apaixonassem e tivessem filhos – seria Deckard um replicante diferente, com capacidade de viver mais tempo e ainda envelhecer – acredito que deixar isto em aberto é uma bela maneira de homenagear e estender a complexidade filosófica do filme original – bem completada aqui pelo final, revelando a identidade da filha do ex-Blade Runner, a criadora de sonhos para androides, a Dra. Ana Stelline de Carla Juri, trazendo um belo fecho para o arco dramático e para dar sentido (realmente) à vida de Deckard e seu romance com Rachel.
FIM DOS SPOILERS
O roteiro e a direção complementam toda a trama vista no primeiro longa – afinal, estamos diante de uma história sobre criaturas não humanas que querem ser humanas, mas são perseguidas por humanos que não se importam em ser humanos – o que é uma ironia gigantesca ao constatar que nem com tantos avanços tecnológicos o ser humano não conseguiu preencher seu vazio existencial.
Portanto, não há como sair da sessão deste Blade Runner 2049 sem no mínimo se sentir emocionado por sua tristeza ou por uma suave felicidade que vem justamente de quem só quer viver com liberdade – afinal, estamos presenciando um ponta pé inicial para uma franquia que pode trazer um discurso tão lindamente poético e filosófico que é impossível não tocar o espectador que está disposto a apreciar os caminhos que seus ricos (e clássicos) personagens passarão – Blade Runner 2049 consegue isso não só porque é um filme riquíssimo como arte e tecnicamente perfeito – ele consegue isso porque fala diretamente com a alma de quem assiste, tornando-se uma experiência que não caberá para todos os públicos – é uma obra de arte, acima de tudo.
Provavelmente estamos presenciando o nascimento de um forte candidato a jovem clássico do cinema.