O muro entre as espécies
por Francisco RussoPor mais que a ambientação sombria de um futuro nem um pouco otimista seja inebriante, o brilho maior de Blade Runner, o Caçador de Andróides está no fato de que os vilões do filme nada mais querem além de viver. Tal situação abre várias portas acerca do significado da vida, seja ela natural ou artificial, passando ainda pelo preconceito e a própria escravidão de uma espécie sobre outra. Trinta e cinco anos depois, o diretor Denis Villeneuve investe nestes mesmos ideais para apresentar um novo Blade Runner, ao mesmo tempo profundamente reverente ao original mas que também aponta caminhos para o futuro.
O maior acerto de Blade Runner 2049 está na manutenção da ambientação que consagrou o filme dirigido por Ridley Scott - que retorna nesta sequência, agora apenas como produtor executivo. Os carros voadores, a chuva (ou neve) constante, os prédios imensos com poucas pessoas nas ruas, os gigantescos painéis em neon... está tudo lá, apontando um futuro decadente onde o brilho vem apenas do que é falso - não por acaso, a única personagem que demonstra vivacidade é justamente uma acompanhante digital programada com tal finalidade. Trata-se de um mundo seco e sério, de preconceitos arraigados, onde as pessoas pagam para ter um vislumbre de felicidade sem se importar se este é verídico. A sensação, ou a necessidade, é mais importante.
Tal dicotomia entre natural e artificial norteia toda a narrativa de Blade Runner 2049, especialmente através da óbvia comparação envolvendo os replicantes. Já no letreiro de abertura surge a informação que os Nexus 8, vistos no longa original, são bastante raros, por mais que alguns ainda tenham sobrevivido. O colapso dos ecossistemas fez com que a humanidade investisse de vez na agricultura sintética - mais uma vez, o artificial se infiltrando no cotidiano - e uma nova leva de replicantes fosse criada, mais obedientes ao bicho homem, e mais uma vez escravizados. Entre eles está K (Ryan Gosling, intencionalmente sisudo), o blade runner da vez.
Há uma diferença essencial entre os personagens de Gosling e de Harrison Ford no original, que retorna nesta sequência: K tem consciência de que é um replicante, o que lhe garante uma aceitação tácita de seu destino. Entretanto, é a partir de uma jornada de redescoberta sobre si mesmo que Villeneuve trabalha questões filosóficas sobre alma e vida, de forma a detalhar (e, de certa forma, justificar) o modo de agir das duas espécies racionais que coabitam a Terra, humanos e replicantes. É o muro existente entre eles que leva ao preconceito, manifestado a partir de um sem-número de adjetivos pejorativos, e à própria escravidão - que, por sua vez, remete ao que o homem branco fez com a população negra, séculos atrás. Seria o controle e a dominação de outra espéce uma necessidade humana, manifestada também pela transformação física da Terra em uma imensa selva de pedra?
Tal questionamento é apenas um dos levantados pelo longa-metragem, não só através da história mas também a partir do deslumbrante visual trazido por Villeneuve e sua equipe. De ritmo intencionalmente lento, Blade Runner 2049 assume contornos claramente contemplativos com o objetivo de seduzir pelo artificial e, a partir dele, questionar sentimentos. A belíssima direção de arte e fotografia ajudam bastante neste sentido, compondo cenários sempre envolventes e atraentes. Ao menos até a aparição de Harrison Ford.
É impressionante como o ressurgimento de Deckard altera completamente o tom do longa-metragem. Por mais que o retorno de personagem tão icônico imediatamente traga um sorriso aos fãs, é a partir de sua aparição que Blade Runner 2049 assume um viés mais próximo ao de um filme de ação, com vilões dedicando tempo a esmiuçar seus planos e um número bem maior de cenas de ação. Não que tal trecho seja ruim, há um apuro nos efeitos especiais e, mais uma vez, na direção de arte que asseguram o interesse. Mas é tão menor e tão menos relevante ao que foi apresentado até então, que decepciona. Também por apontar um possível futuro para a franquia que, se mal trabalhado, facilmente tende ao palatável em detrimento do que Blade Runner realmente representa: o questionamento sobre o que é a vida.
Apesar de um terceiro ato inferior ao exibido até então, ainda assim Blade Runner 2049 impressiona pela narrativa visual construída por Denis Villeneuve, absolutamente reverente ao que foi feito por Ridley Scott décadas atrás e trazendo alternâncias simbólicas que ampliam o leque de questionamentos filosóficos trazido pelo longa original. Destaque também para a bela atuação da (por enquanto) pouco conhecida Ana de Armas, da boa presença de Robin Wright , da densidade dramática trazida por Dave Bautista - é sério! - e aos impactantes efeitos especiais, especialmente nas sequências onde há sobreposição de imagens e no nostálgico encontro entre K e Deckard.
Por mais que não seja uma sequência essencial, é bom notar que caiu em mãos tão respeitosas e que tão bem compreenda do que tratava o filme original, sem descambar para um mero caça-níqueis que se aproveite de uma marca conhecida.