Se ao lançar Melancolia, em 2011, Lars Von Trier disse estar temeroso e não gostar de rever o filme porque o considerava o mais comercial de sua carreira, aqui ele finalmente pode constatar essa afirmação. E com força. Lars parece estar passando por uma popularização em seus filmes e não apenas em números ou qualquer coisa relacionada ao público (no Brasil, por exemplo, o filme teve a maior abertura de todos os filmes do cineasta), mas também em relação à estética e ao discurso narrativo usado. Dessa vez, contando a história de uma ninfomaníaca (ou viciada em sexo), que, quando achada por um homem já velho após algum acidente misterioso, resolve narrar vários passos de sua vida em capítulos para mostrar o quão horrível pessoa ela é.
Nota-se abertamente uma intenção de atingir novos públicos. Ou talvez uma compreensão, pois, como se sabe, o marketing em torno de A Ninfomaníaca foi pesadíssimo e Von Trier é bom (talvez o melhor no mundo atualmente) em criar algo que se aproxima de uma mitificação de suas obras. É provável que a espera por esse filme, e sua continuação, não esteja mais relacionada ao seu conteúdo supostamente explícito há bastante tempo, mas também é difícil identificar os motivos para que ele tenha se popularizado tanto, a não ser o belo trabalho de divulgação e distribuição de polêmicas.
Visto isso, resta tentar entender um pouco dessa popularização em A Ninfomaníaca, que, ao meu ver, fica bem mais evidente quando comparamos com toda a filmografia do diretor até aqui. Por exemplo, a montagem mais frenética em certos pontos do filme, como naquele Primeiro Capítulo. A trilha-sonora também é uma das mais inesperadas possíveis, em certas cenas a impressão que fica é que fomos transportados para um filme hollywoodiano, com uma música pop embalando a cena. Há também os detalhes pulando na tela, e coisas sendo desenhadas enquanto os personagens falam. O ritmo do filme é louvável, de forma que mesmo nos momentos mais lentos, a atenção se mantém no que está sendo contado por Joe - ainda que não seja muito necessário o uso do preto & branco pra contar o que se conta no Quarto Capítulo. É bem provável que tenha surgido essa procupação na concepção do filme: se pretendo, e vou, atingir um novo público com essa obra, porque não adapta-la a esse público?
É claro que não é algo que se vislumbra em todo o filme, afinal, Lars Von Trier não é fácil de se desprender de sua câmera nervosa, seus enquadramentos denunciadores ou de sua direção de atores precisa, com um forte embasamento teatral, que, aliás, é evocado em sua plenitude total no Terceiro Capítulo onde Uma Thurman entrega a melhor performance de sua carreira recente. E dizer que o Cinema emudece pra ela não é mentira alguma. Nessa parte, aliás, se esconde o ponto central de um dos trunfos do filme, que é o de rir de si próprio. Existe o humor no filme, ora negro, ora bastante comum, mas sempre presente, e não há intenção alguma de esconder esses momentos engraçados. Seja na situação, quanto nas conversas entre Joe e Seligman - nome que, aliás, gera um momento divertidíssimo.
Revigorando-se por não ser um filme tão pesado quanto se esperava, por assim dizer, o roteiro parece abrir mão de qualquer evitação do pedantismo, em seu significado mais literal. Está tudo jogado ali, de religião ao papel da mulher no mundo atual, de Bach a Edgar Allan Poe, por vezes falta uma certa coesão no encadeamento de ideias proposto, o que nunca chega a ser sentido, graças à mão pesada da direção. O que poderia ser tachado como problema é, sem dúvida, o didatismo do filme, mais uma das coisas que Von Trier parece ter aumentado aqui ao pensar em seu público; nunca foi tão didático em suas referências antes. Dessa vez, tem pouca coisa direcionada a uma interpretação livre porque Joe e Seligman fazem questão de explicá-las, às vezes até por duas vezes, como que para dizer: "olhem, é isso que eu estou querendo dizer com esse simbolismo/metáfora!".
Apesar de querer muito ver a versão integral da obra, aquele corte do diretor já comentado de 5h30, não exatamente senti falta das cenas mais pesadas tão prometidas, até porque, mesmo sem elas o filme se basta. É bem montado, e todas as cenas são fundamentais. O problema aqui está em avaliar um filme pela metade. Porque é anticlimático, não tem como negar. Quase consigo sentir a tristeza de Lars Von Trier ao ter que exibir essa história da forma como pensou, de maneira picotada. Pode ser que muitas coisas ditas aqui se justifiquem na continuação, mas como é necessário avaliar essa "metade inicial" ou "início do pedaço final" que encerra a última trilogia de um cineasta que é cheio delas, ao tentar fazer mais um tratado da natureza humana já é possível constatar que mostrou exatamente a que veio. E se alguns críticos chamam Anticristo, Melancolia e Ninfomaníaca de "Trilogia da Natureza", eu prefiro chamar de "Trilogia Charlotte Gainsburg", pelo menor por enquanto, porque é ela a grande alma dos três. E se já deu pra testificar o poder dessa atriz nesse início de uma terceira empreitada , onde ela nem fica tanto tempo na tela e empresta sua voz a uma narração absolutamente funcional, imagine no que vem por ai em Março...