De algum tempo para cá, doenças emocionais em nossa sociedade vem aumentando cada vez mais, principalmente devido à vida estressante dos dias de hoje. Até alguns anos trás, esses tipos de doenças eram vistas como fraquezas, defeitos de caráter e até “frescuras”. Porém, após o suicídio do ator Robin Williams (vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Gênio Indomável, em 1997) devido à depressão, em 2014, doenças emocionais passaram a serem vistas não só como enfermidades, mas também como algo que pode matar.
Uma das doenças emocionais mais conhecidas é o transtorno bipolar, também chamado de maníaco-depressivo. Segundo o Dr. Drauzio Varella, o transtorno bipolar é um distúrbio psiquiátrico complexo. Sua característica mais marcante é a alternância, às vezes repentina, de episódios de depressão com os de euforia. As crises podem variar de intensidade (leve, moderada e grave), frequência e duração. As flutuações de humor têm reflexos negativos sobre o comportamento e atitudes dos pacientes, e a reação que provocam é sempre desproporcional aos fatos que serviram de gatilho ou, até mesmo, independem deles. Ainda não há cura para essa doença, mas, assim como a diabetes, pode ser controlada. Com medicação e tratamento adequado (psicoterapia, alimentação, exercícios, etc.), a pessoa que sofre desse transtorno pode levar uma vida praticamente normal.
Hollywood tem tradição em filmes que tratam sobre doenças emocionais e/ou mentais. Podemos citar como exemplo Um Estranho no Ninho (1975, vencedor de cinco Oscars, inclusive melhor filme) e Rain Man (1988, vencedor de quatro Oscars, também incluindo o de melhor filme). Sentimentos Que Curam segue essa tradição hollywoodiana.
O filme conta a história da família Stuart, que se passa entre os finais das décadas de 1960 e 1970, na cidade de Boston (EUA). Cameron, chamado por todos de “Cam”, (Mark Ruffalo, da franquia Os Vingadores) foi diagnosticado com transtorno bipolar, mas isso não o impediu de casar-se com Maggie (Zoe Saldana, da franquia Star Trek) e de terem duas filhas: Amelia (a estreante Imogene Wolodarsky) e a caçula Faith (a também estreante Ashley Aufderheide). Porém, à medida que o tempo passa, a doença de Cam piora, sua família o abandona e ele acaba por ter um colapso que o leva para uma internação em uma instituição psiquiátrica.
Maggie e as crianças o visitam frequentemente, mas a situação financeira da família não está boa. Após receber alta, Cam tenta reconciliar-se com sua esposa e filhas. Um dia, Maggie propõe a Cam tomar conta das crianças enquanto ela vai à Nova York fazer um Mestrado, arranjar um trabalho melhor e resolver os problemas financeiros da família. Cam concorda, pois vê essa proposta como algo que não só pode ajudá-lo em sua recuperação como também uma chance para a reconciliação familiar que tanto deseja.
Sentimentos Que Curam marca a estreia na direção da roteirista Maya Forbes (Monstros vs Alienígenas), que também fez o roteiro do filme baseado em sua experiência pessoal (seu pai também sofre de transtorno bipolar). Forbes mostra uma direção segura - embora por vezes acadêmica – tanto nas cenas dramáticas quanto humorísticas. Forbes decidiu dar um tratamento mais “light” para falar de um tema tão “pesado”. Ao invés de um dramalhão no estilo “vejam-como-eu-sofri-com-a-minha-doença”, ela optou pelo humor seguindo a linha do filme francês Intocáveis (2011, que conta a história de um tetraplégico). Acabou por ser uma boa escolha, pois atenua um tema tenso e faz o público aproximar-se mais do filme.
A reprodução de época, tanto em vestuários como em costumes, é precisa. A década de 1970 foi uma época de “pisada no freio” após a loucura da década de 1960 com o seu sex, drugs & rock and roll, mas continuou o caminho de liberalização de costumes como mostra o próprio casamento de Cam e Maggie, inter-racial e com filhas mestiças, algo ainda raro naquele tempo. O fato de um homem ser “dono-de-casa” e cuidar para que as crianças vão à escola, comam bem e façam amigos era também algo difícil de ser visto e tido como admirável – principalmente pelas mulheres - como bem mostra uma cena do filme.
O ponto forte do filme é o seu elenco. Mark Ruffalo sabe o que é padecer de uma doença, pois tinha um tumor cerebral, que foi retirado em 2002. Embora o tumor tenha revelado-se benigno, ficou algum tempo com o lado esquerdo do rosto paralisado. O episódio o fez refletir muito sobre a vida e a morte e essa experiência particular faz com que tenha uma atuação espetacular. O espectador ri muito com as “pirações” de Cam, se comove com seu amor por Maggie e as crianças, mas também fica bastante impressionado ao vê-lo “surtar”. E isso sem apelar para clichês ou demagogia, apenas usando seu grande talento.
Gostaria de fazer um parêntese para dizer que Mark Ruffalo é um cara legal. Além de ator vencedor do prêmio Emmy (o Oscar da TV) e duas vezes indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (em 2011 e 2015), ele é um ativista dedicado às causas nobres: posicionou-se contra a administração de George W. Bush, apoia a causa palestina, defende movimentos ecológicos e, nas eleições presidenciais brasileiras de 2014, apoiou a candidata Marina Silva. Mas, quando esta voltou atrás na sua posição inicial de defesa do casamento gay e dos direitos reprodutivos da mulher pressionada por lideranças evangélicas como o “pastor” Silas Malafaia, retirou o apoio. E o fez de uma forma elegante.
Zoe Saldana corria o risco de ser a chata do filme, que só ficaria implicando com Cam. Porém, surpreendendo a todos, principalmente aqueles que a vem somente como uma mulher de rostinho bonito e corpo “sarado”, ela sai pela tangente e tem uma atuação forte e sensível como a mãe que tem que segurar todas as barras em prol de sua família. Mas, assim como Ruffalo, ela não usa de clichês ou demagogia e prova que é uma atriz que ainda tem muitas coisas boas para mostrar.
Entretanto, os pais não seriam os pais sem suas filhas. Imogene Wolodarsky e Ashley Aufderheide dão um show à parte. Nem parece que elas estão fazendo um filme pela primeira vez tamanha a naturalidade com que atuam. Imogene é filha de Maya Forbes e, segundo a mãe, o parentesco entre elas facilitou o trabalho: “Eu podia fazê-la chorar sem me preocupar em causar danos a ela”. E, tampouco teve dificuldades com Ashley, que teve a melhor tirada do filme ao dizer que o pai é “infinitamente urso polar” (traduzido de “infinity polar bear”, nome do filme em inglês) ao invés de “infinitamente bipolar”.
O ponto fraco do filme é a presença dos pais de Cam, vividos por Keir Dullea (2001, Uma Odisséia no Espaço) e Beth Dixon (da mini-série de televisão A Tempestade do Século), que não tem muito o que fazer na trama e nem precisavam aparecer.
Uma coisa que não pode deixar de ser dita: o título brasileiro do filme é simplesmente horroroso. É um hábito no Brasil dar aos filmes estrangeiros títulos que não tem nada a ver. Como já vimos, o título original é totalmente diferente e, como também já vimos, o transtorno bipolar é incurável, de modo que, neste caso, não há sentimentos que possam curar esse mal. Já em Portugal, o título é Amor Polar! Também deixa muito a desejar, mas, pelo menos está mais próximo do original. Quem sabe, um dia, tanto brasileiros quanto portugueses acertem...
Sentimentos Que Curam foi lançado no Festival de Sundance, em 2014 (o lançamento em circuito comercial é neste ano), recebeu boas críticas e foi indicado ao Prêmio Especial do Júri. Assim como o filme Samba (ver a crítica aqui), este é daqueles filmes que, se agora já são bons, com o passar do tempo vão melhorar. E quem for às salas de exibição não vai se arrepender de assistir, pois vai se divertir e perceber que um doente emocional não é um fraco, um “fresco” ou alguém cheio de defeitos de caráter, é apenas um ser humano como todos nós. E quem garante que os ditos “normais” não são mais doentes que ele?