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    Holy Motors
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Holy Motors

    O cinema e o mundo

    por Bruno Carmelo

    A primeira coisa que se deve dizer sobre este filme é que ele não conta uma história linear, nem tem uma mensagem precisa. Desde que foi exibido no Festival de Cannes, ele suscitou as mais diversas reações e interpretações, e provavelmente nenhuma delas está completamente certa ou errada. O texto a seguir apresenta uma destas interpretações possíveis.

    De todas as faces de Holy Motors, me pareceu evidente que este é um filme sobre o cinema. Não uma declaração de amor à sétima arte, como se faz às dezenas por aí, e sim um estudo atentivo e interessado do ato de se representar na arte os fatos da vida. Não é preciso ter uma história diretamente metalinguística (não se vê câmeras de filmagem, não existe um público - exceto na primeira cena), e sim uma referência ao caráter de representação, em todos os sentidos do termo: a representação do ator, ou aquela em que se ilustra atos reais de maneira fictícia.

    No filme, o Sr. Oscar (Denis Lavant) passa o dia em sua limusine luxuosa, alternando os "encontros". Em cada parada, ele assume uma nova identidade: um mendigo cego e agressivo, um pai jovem e atentivo, um senhor à beira da morte, um ladrão assassino. Mas quem paga este homem? Por que ele executa esta função? O filme não indica. O elemento mais perturbador de Holy Motors é a ausência de explicações: a partir de qual momento ele está fingindo? E por quê? "Pela beleza do gesto", ele explica vagamente, referindo-se de certa maneira à utilidade e ao propósito do cinema.

    Se a história parasse por aí, teríamos um simples desfile de pequenas histórias, um filme episódico. Mas o diretor Leos Carax, tão brutal quanto poético, desenvolve sua ideia até as últimas consequências: ele mata o personagem em um dos encontros, apenas para vê-lo se levantar e limpar o sangue segundos depois; ele coloca-o em uma enrascada dentro de um bueiro, mas mostra-o de volta à rua, segundos mais tarde, sem explicar como se salvou. Assim como todas as representações, esta história é inconsequente, não definitiva: ela pode recomeçar, se transformar, voltar atrás. Em seu caráter infinito e circular, ela se difere da finitude da vida.

    Assim, o mundo fora da limusine é um grande palco, onde tudo parece verdadeiro (vemos Oscar morrendo, sangrando, mordendo os dedos de uma pessoa), mas nunca real (vemos a maquiagem, as roupas sendo colocadas, os personagens sendo criados diante dos nossos olhos). As questões de "real", "realidade", "ficção", "verossimilhança", "ficcionalização", "falso", "verdadeiro" e outros termos inerentes ao cinema nunca foram tão questionados quanto neste filme profundamente teórico.

    Holy Motors também é um filme sobre a mise en scène, sobre o ato de dispor elementos em cena, e criar a partir deles um mundo digno de crença. Sr. Oscar transita entre todos os gêneros, da ficção científica (a cena do motion capture) ao musical (a aparição de uma frágil Kylie Minogue), sem esquecer o drama, o horror, o erotismo. Este personagem é o arquétipo do homem qualquer, que pode se metamorfosear em qualquer um. Ao mesmo tempo, ele desempenha seu papel sem uma plateia precisa, sem que as pessoas ao redor saibam que está representando – e outro desconforto deste filme encontra-se justamente no ato de ver uma representação silenciosa, e não compreender com quem ela dialoga, a quem ela se destina.

    No fim, pode-se facilmente imaginar este filme sendo estudado por diversos teóricos, rendendo teses de doutorado, além dos gritos de "gênio" de uma parte da crítica, e de "farsa" da outra parte. Talvez Holy Motors seja menos pretensioso do que ele é complexo, misterioso. Leos Carax mergulha seus personagens na própria essência do dispositivo cinematográfico, sem fornecer todas as chaves de leitura da sua obra. Ele é específico o suficiente para desenvolver uma ideia de maneira coerente, e abstrato o bastante para não limitar o potencial do seu conceito. Cabe ao espectador projetar, tanto no sentido cinematográfico quanto psicanalítico do termo, seus próprios desejos e sentidos neste personagem que é todos os homens do mundo, dentro e fora das telas.

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