A cada vez que é anunciado que um livro ou saga literária de grande sucesso no cenário YA ("Young Adult", ou literatura juvenil) será adaptada para o cinema, os fãs dessas histórias ficam preocupadíssimos com as possíveis modificações que serão feitas no enredo, situações e personagens para que a trama caiba nas duas horas, duas horas e meia de projeção.
Essa preocupação, apesar de parecer exagerada, tem fundamento: nas últimas décadas, muitas sagas foram arruinadas nas telonas por uma série de motivos, dentre eles, escolhas ruins na hora de elaborar os roteiros adaptados. Por motivos que vão desde a grande quantidade de modificações no enredo e na própria construção da personalidade dos personagens até escolhas ruins de elenco, "O Diário da Princesa", de Meg Cabot, e "Desventuras em Série", de Lemony Snicket/Daniel Handler se destacam como exemplos máximos desse tipo de caso, já que sequer conseguiram somar mais de três filmes juntos, sendo que as duas séries literárias, somadas, possuem 23 livros.
"Percy Jackson", de Rick Riordan, quase foi pelo mesmo caminho, mas ainda conseguiu fôlego para a produção de um segundo filme, quase quatro anos depois. No entanto, ainda é alvo de frequentes críticas referentes às modificações feitas, assim como a série "Harry Potter", de J.K. Rowling (o que é até mais entendível, já que os sete livros da série possuem, em média, 465 páginas cada).
Obviamente, como a própria palavra diz, adaptação cinematográfica não é e nem pretende ser uma cópia fiel do que foi contado em palavras. Não há possibilidades narrativas e temporais de fazer com que tudo saia igual; muitas situações narradas nas páginas não funcionam bem em imagens, outras pedem modificações para serem melhor compreendidas visualmente.
No entanto, podemos notar, nos últimos anos, um grande esforço empreendido pelas produtoras hollywoodianas para se manter o mais fiel possível ao que os autores imaginaram. Para isso, eles contam com a presença de muitos dos escritores das sagas de sucesso no set das filmagens, na co-produção ou como co-roteiristas das adaptações. Esse esforço resulta em adaptações que fazem jus ao título de "adaptação"; filmes em que, quando é preciso cortar elementos presentes nos livros, recombinam outros elementos da própria história para dar sentido a trama. É o caso de "A Menina que Roubava Livros" e a saga "Jogos Vorazes", com foco no trabalho em parceiro do diretor Francis Lawrence com a autora Suzanne Collins no segundo filme da série, "Em Chamas", muito elogiado pelos fãs dos livros pela esforço da produção em se manter fiel ao conteúdo original.
Por gostar muito da saga de Veronica Roth, fico imensamente feliz em dizer que "Divergente" vai por esse mesmo caminho. De início, quando a escalação do elenco foi finalizada, a maioria dos fãs estranhou a ausência de personagens fortes, que serão importantes para o desenvolvimento da trama nos próximos volumes, nesse primeiro filme. No entanto, ao assistir ao longa, entendemos que, se já apresentados nesse primeiro momento, esses personagens ofuscariam a história inicial a ser contada; afinal, Veronica não criou uma trama de fácil entendimento e digestão, e fazer com que pessoas que não leram os livros consigam absorver todas as informações em 140 minutos é tarefa hercúlea (que o roteiro de Evan Daugherty e Vanessa Taylor conseguiu concluir com êxito, diga-se de passagem - minha mãe, que não leu os livros, não teve nenhuma dúvida ao término do filme!). Além disso, saí da sala de exibição contente em perceber que apenas os elementos incríveis criados por Roth foram mantidos, tendo sido deixados de lados todos os mimimis que se repetem pelo livro e que tornam a leitura da saga, em algumas momentos, pelo menos ao meu ver, um pouco cansativa (como alguns trechos do romance entre Tris e Tobias).
Se a nota para a adaptação da história de Tris nas telonas em relação ao que foi cortado da trama original é 10, a nota para o conteúdo que foi inserido é 11! O clímax do filme é - pasme! - melhor trabalhado na versão cinematográfica, se tornando um clímax, de fato, já que a sensação que temos, ao ler os livros, é que volume um e dois poderiam se juntar numa coisa só pela continuidade. O papel prolongado de Jeanine Matthews na trama, reforçado pela presença sempre maravilhosa Kate Winslet, traz mais empolgação à conclusão da história.
Em termos de atuação, nenhum dos membros do elenco decepciona. Shailene Woodley e Theo James, apesar de serem bem mais velhos do que seus personagens, têm química e convencem como o casal jovem que devem ser. A grande quantidade de personagens presentes na trama, no entanto, mesmo com o já citado aparecimento adiado de alguns deles, torna difícil um aprofundamento maior em suas características pessoais nesse primeiro momento. Também é mostrado muito pouco das características das outras facções, mas, calma! Haverá muito tempo para ambas as coisas nos próximos três filmes (já que foi anunciado que "Convergente", o último volume, será dividido em dois longas, como é de costume atualmente - o que não condeno e nem concordo que seja "só para dar mais dinheiro". Finais são complexos, gente!).
A direção de Neil Burger é competente, em grande parte devido ao bom roteiro, e os outros aspectos técnicos do filme não decepcionam: a trilha sonora instrumental, produzida por Hans Zimmer, intercalada com canções de Ellie Goulding, estabelece bem o clima da Chicago futurista; fotografia, design de produção e figurinos estão acertadíssimos, assim como os efeitos especiais e as ótimas coreografias de luta.
"Divergente" prova que, quando a produção se mantém perto do autor do livro - Veronica Roth inclusive atua como figurante no filme, na cena em que os membros da Audácia descem de tirolesa entre os prédios - todos saem mais felizes, tanto os fãs do livro, pela fidelidade ao material original, quanto aqueles que nunca tiveram contato com as obras literárias, que não saem do filme cheios de dúvidas na cabeça.