Proteja-se do dilúvio de lamentações
Tenho um pé atrás com produções bíblicas. Primeiro porque, sinceramente, não fazem parte do meu leque de prioridades. Devo dizer que me interesso mais para me inteirar sobre o tema e não ficar pra trás em algo tão histórico e importante. Segundo porque tenho muita preguiça dos fervorosos de plantão, que criam polêmica até por causa da sombra transparente de Deus, dizendo que os roteiros adaptados para filmes religiosos nem sempre seguem à risca os ensinamentos da Bíblia. Ora, estamos falando de cinema. Produção e direção têm o direito de inovar, o dever de criar e o poder de deixar o produto final mais do que exemplar. É o caso do filme “Noé”, uma superprodução que está em cartaz em tudo quanto é cinema por aí, como um dilúvio no mês de março, e que está dando o que falar entre os abafados religiosos.
A história, como todo mundo sabe, conta a saga de Noé (Russell Crowe), o único homem que se encontra íntegro e temente aos preceitos de Deus e, por isso, tem uma missão. Por causa do pecado que se alastrou pelo mundo, o Deus Criador decide apagar a humanidade e suas maldades, e os únicos poupados deveriam ser os animais, puros e merecedores da evolução. Noé tem essa visão do dilúvio avassalador através de sonhos e constrói uma arca gigantesca para abrigar casais de todas as espécies, assim como Deus desejava.
E são nos detalhes de um filme de proporção épica de duas horas e meia, que abusa da técnica e da poesia, que cria-se o bafafá. A direção de Darren Aronofsky se baseia nos estudos cabalísticos, e tudo ganha uma nova versão. Os anjos caídos ou guardiões são bichos de pedra no melhor (ou pior) estilo “Senhor dos Anéis”, Adão e Eva são o pontapé inicial da história, Noé demora só uma década (e não cem anos) para a grande construção, e há uma tentativa de invasão à arca, comandada por Tubalcaim (Ray Winstone), descendente de Caim, que matou o irmão Abel e disseminou o mal mundial. Um prato cheio pra falação religiosa desenfreada.
Longe dessa polêmica chata, o filme tem sequências de ação de tirar o fôlego, uma exímia fotografia com locações na Islândia, assim como cenas de segundo plano se distanciando de forma espetacular, fazendo que o ingresso 3D valha à pena, além das belas atuações de Jennifer Connelly e Emma Watson. Mas o que mais chama a atenção é que o foco de “Noé” não são os animais, que dormem na arca o tempo todo, e, sim, a família do personagem principal, mais humanizada, detalhada, cheia de problemas reais a se resolver. Problemas esses que, ao se imaginar naquele tempo ou naquela situação, não tem como não refletir sobre o que os homens estão fazendo com o mundo em que vivemos e se realmente o merecemos. Se pudéssemos fazer como Deus fez no Velho Testamento e encharcássemos esse planeta de água, fora a fora, só pra acabar com a zona podre que vive nele, pensaríamos duas vezes? Não mesmo! Somos egoístas, olhamos só para o nosso umbigo e faríamos questão de começar do zero. É mais fácil, mais cômodo, mais rápido. Porém, esquecemos que, se eliminássemos a humanidade e suas mazelas, iríamos para o ralo junto com elas. Não basta apontar os erros dos outros, é preciso navegar nas águas turvas do mais fundo interior e perceber que a tempestade pode cessar, e as inundações podem até secar, mas não vivemos só de dias ensolarados. Você tem é que fazer a sua parte, pintar os raios de sol e passar a borracha nas nuvens escuras. Se o poder de Deus é tão forte que é capaz de mover montanhas e provocar dilúvios, não pode nos faltar fé e esperança de dias melhores. A reflexão individual deve ser uma constante. Fazer a sua parte, uma abundante.