Há muito tempo que estamos familiarizados com Tim Burton. Em termos gerais, sempre sabemos o que esperar de um novo filme do cineasta. Costuma ser assim: personagem que se sente deslocado em seu próprio mundo se envolve em uma nova realidade na qual é aceito e tentará contribuir decisivamente para o bem-estar dos novos amigos que ali fez, em meio à fotografia e cenários góticos e belíssimos. Alice? Peixe Grande? Ed Wood? O mais novo personagem a figurar na galeria de heróis burtonianos é o garoto Jacob, neste O Lar das Crianças Peculiares, longa que reafirma o prestígio do diretor. Embora previsível, Burton, com sua fórmula, continua a atrair a atenção de milhares de espectadores que não relutam em comprar ingressos, porque sabem que, durante duas horas na frente da tela do cinema, vão embarcar em mais uma viagem bizarra e surreal por um mundo estranho, fantástico e... peculiar.
Desta vez a história nos apresenta o introspectivo Jacob (Asa Butterfield, de A Invenção de Hugo Cabret) que, após a misteriosa morte de seu avô Abe (Terence Stamp), de quem era muito próximo, parte para uma ilha no País de Gales onde haveria um orfanato que, por sua vez, abrigaria crianças dotadas de habilidades especiais, lideradas pela Sta. Peregrine (Eva Green, desta vez obviamente trajando um figurino muito mais discreto do que os vistos em Sin City: A Dama Fatal e 300: A Ascenção do Império, porém mantendo sua majestosa beleza sinistra). Essa viagem, ‘indicada’ por Abe, resultará em grandes revelações para o garoto que, por fim, encontra o tal orfanato e seus insólitos moradores após atravessar uma fenda temporal. É com a ‘garota flutuante’ Emma (Ella Purnell, com seus grandes olhos) que Jacob passa a maior parte do tempo nessa outra realidade, conhecendo também um pouco de cada uma das crianças, bem como suas peculiaridades. Entre elas, a garotinha que esconde na nuca um ‘bocão’ repleto de presas afiadas consegue ser, ao mesmo tempo, assustadora e encantadora. E os gêmeos, por sua vez, se mostram tão singelos quanto mortais. Mas é a mentora que detém a maior habilidade, a Srta. Peregrine consegue ‘rebobinar’ o próprio tempo. Com isso, ela mantém o orfanato a salvo dos bombardeios da 2ª Guerra Mundial, em uma fenda temporal na qual o mesmo dia se repete indefinidamente, no caso, para eles é sempre 03 de Setembro de 1943. A travessia de Jacob por essa fenda não foi por acaso, a ameaça dos etéreos precisa ser combatida, e o garoto é peça importantíssima no confronto com tais criaturas.
É notório, portanto, que essa história tem uma formatação que casa perfeitamente com o estilo narrativo de Burton. E o resultado atende às expectativas, levando em conta que se trata de uma produção que tem como público alvo o infantil, no melhor estilo Sessão da Tarde, sem ousadias no roteiro, sem abordagens complexas (o isolamento social e a Guerra passam superficialmente pelo longa). Assim, pisando em terreno que conhece, o da fantasia, Burton exercitou o que tem de melhor, a habilidade de mesclar o tenebroso e o lúdico. Sua indissociável queda pelo bizarro deixou o longa agradavelmente macabro (há até duas sequências medonhas, porém divertidas, envolvendo animação em stop motion), mas não tão assustador que amedronte as crianças, embora algumas cenas possam incomodar aos adultos mais desavisados. O melhor (ou pior, dependendo do ponto de vista) exemplo disso é uma aterrorizante sequência que envolve olhos sendo devorados...
Essa fantasia na qual Burton pôde se deliciar surgiu de uma coleção de fotografias antigas e exóticas reunidas pelo também norte-americano Ransom Riggs. Aquelas imagens esquisitas e desbotadas serviriam de inspiração para o escritor idealizar o que se tornou o livro O Orfanato da Senhorita Peregrine Para Crianças Peculiares, lançado em 2011, que é seu primeiro romance, devidamente ilustrado por tais registros fotográficos. A publicação rapidamente entrou na lista de Best Sellers do The New York Times e, apenas cinco anos após seu lançamento, já tem o privilégio de ser adaptada para o cinema em um blockbuster com orçamento de 110 milhões de dólares, conduzido por um aclamado cineasta que tem propriedade para mergulhar de cabeça nessa atmosfera fantástica, pois faz isso desde que ele próprio era uma criança. Coube à roteirista Jane Goldman adaptar a história do livro de Riggs. E há uma familiaridade para ela neste conteúdo envolvendo crianças ‘anormais’, pois ela também colaborou com o roteiro de X-Men: Primeira Classe e X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido, ambos envolvendo adolescentes com poderes. É mais um ponto a favor na bem-sucedida realização deste projeto.
O habitual capricho do diretor com o visual de seus filmes também não poderia deixar de se fazer notar. O desenvolvimento da trama se dá envolto por cenários de cair o queixo, ainda que dessa vez um pouco menos sombrios do que de costume, mas burtonescos o suficiente para os fãs se esbaldarem. Os jardins do orfanato parecem ter recebido a visita de Edward Mãos de Tesoura. A sequência embaixo d’água, por sua vez, bem como outra, noturna, na chuva, envolvendo o reset no tempo, vistas em 3D, são mesmo delirantes. Em relação à trilha, burtonianos de plantão conhecem a famosa parceria do cineasta com o compositor Danny Elfman. Este é apenas o terceiro filme de Burton em que o parceiro de longa data não assinou a partitura. O trabalho desta vez ficou a cargo de Mike Higham e Matthew Margeson. Apesar de competentes, os acordes se mostram discretos em momentos grandiosos nos quais os conhecidíssimos corais de Elfman cairiam com perfeição.
Além da equipe, o elenco também costuma se repetir nos trabalhos do diretor. Eva Green, em mais um papel insólito, parece ser o novo ‘Johnny Depp’ de Burton, combinando perfeitamente com os tipos estrambóticos que figuram nas obras do cineasta. Quanto aos novos membros da família burtonesca, destaque para a carismática Ella Purnell, enquanto que o jovem Asa Butterfield apenas cumpre com sua parte, exibindo quase todo o tempo a mesma expressão de estranhamento diante de tudo o que presencia (e não é pra menos). Já Samuel L. Jackson está propositalmente caricatural como o vilão Barron, que lidera os temíveis etéreos. Como cereja do bolo confeitado de bizarrices, essas criaturas digitais completam a dinâmica da história concedendo ótimas oportunidades para as crianças colocarem em prática suas ‘peculiaridades’ no ato final.
Tim Burton, cineasta mundialmente prestigiado e reconhecido, não é unânime (como ninguém é). Há quem o considere superficial por, supostamente, não dar tanta atenção à história ou à interpretação de seus atores, preferindo priorizar muito mais o visual de seus filmes. Se ele se dá melhor com roteiros menos complexos, e que sugerem atuações mais caricatas, pois então que seja. Quase toda sua filmografia, afinal, é dedicada ao público infantil e ao público adulto que se recusa a crescer e que sabe dar valor a uma boa dose de fantasia, na medida certa, com pitadas de terror e muito estilo. O Lar das Crianças Peculiares foi a oportunidade mais acertada nos últimos anos para Tim Burton realizar exatamente aquilo que se espera dele, um filme estranho, com gente esquisita, do jeito que seus fãs gostam!