Um grito de protesto
por Bruno Carmelo"As mulheres são loucas" é uma das primeiras frases que se ouve no filme, na voz de um homem - um cantor. Esta música toca em um táxi, dentro do qual vemos Fayza (Bushra Rozza) sentada, assustada. A câmera treme, em estética próxima à do documentário, sugerindo urgência e realismo. Quem viu os pôsteres deste filme egípcio pôde conferir a mesma cara de espanto da personagem, desta vez dentro de um ônibus, e a frase "Basta!" usada como forte slogan do filme. Não há dúvidas: Cairo 678 é um filme-denúncia.
O que se denuncia, no caso, é o assédio sexual contra as mulheres no Egito pré-revolução popular (o filme data de 2010). Do assédio verbal ao estupro, o filme insiste que esta prática não só é comum, mas também tolerada pelas autoridades locais e pela moral muçulmana. Para ilustrar este problema, o roteiro escolhe três heroínas, de classes sociais e idades diferentes, todas assediadas frequentemente. Pior do que isso, elas são condenadas ao silêncio, porque o assédio é uma desonra não ao agressor, mas à própria mulher e, por extensão, a toda a sua família.
Diante deste painel desolador, o espectador poderá encontrar os problemas típicos dos panfletos militantes: o maniqueísmo, a vitimização e um caráter pedagógico que tende a reforçar os problemas para que sejam mais claros – e que sensibilizem mais facilmente o espectador. Assim, a cada vez que Fayza põe os pés na rua, um homem vem instantaneamente molestá-la. No ônibus, em cada trajeto que ela faz, há um ou mais homens que lhe encostam e passam a mão, e quando um deles parte, outro logo ocupa o espaço "livre".
Com Seba (Nelly Karim) e Nelly (Nahed El Sebaï), as duas outras protagonistas desta história, o sistema é o mesmo: a agressão ocorre não apenas todos os dias, mas em todas as cenas. Com a simplificação típica dos exemplos didáticos, os homens tornam-se todos calhordas e estupradores, e as mulheres são objetos frágeis. Para sublinhar a seriedade da denúncia, o roteiro recheia sua trama com abortos, facadas, garotas arrastadas contra o asfalto, famílias coniventes, namorados insensíveis. Neste contexto, a melhor surpresa vem do fato que não só o assédio é criticado, mas toda exploração sexual das mulheres e do matrimônio – o que inclui a condenação do dever de "consumar o casamento", algo existente inclusive na nossa legislação ocidental.
Se a constatação é unívoca e catastrófica, pelo menos as soluções apontadas conferem ao filme uma maior complexidade. As três mulheres buscam caminhos diferentes para lidar com a questão: Seba decide agir pela moral (ela dá cursos de defesa pessoal às mulheres), Nelly pela lei (ela entra com um processo na justiça contra seu agressor), e Fayza pela violência (munida de uma faca, ela ataca todos os homens que a tocam no ônibus).
A narrativa parece hesitar entre a solução a defender, alimentando uma relação bastante ambígua com a violência, que aparece frequentemente como algo justificável. Enquanto o filme alterna os pontos de vista, ele também adiciona personagens e sub-tramas, como a do investigador de polícia e a do marido de Fayza. Neste grande mosaico, as histórias se entrecruzam, de maneira frenética e um tanto dispersa, com personagens sendo ignorados durante mais de trinta minutos pela narrativa antes de serem resgatados.
Fiquei me perguntando porque Cairo 678 me parecia tão inferior ao excelente A Separação – ambos orientais (o primeiro egípcio, o segundo iraniano), baseados no mosaico de personagens e nas questões morais da sociedade islâmica. Acredito que, entre os dois, a estratégia narrativa semelhante tenha sido aplicada a causas muito distintas: A Separação não buscava acusar nada nem ninguém, mas focar na moral dos problemas cotidianos.
Já Cairo 678 pretende acusar os homens e as autoridades políticas, mas ao invés de analisar vários lados de uma mesma questão, ele exibe posições diferentes sem saber qual solução defender. E para um filme de denúncia, não saber qual postura se quer adotar é um problema de peso. Por fim, Cairo 678 passeia pelos crimes e pelas histórias de uma dezena de personagens, mas sua conclusão limita-se infelizmente à constatação do problema, ao grito inscrito no pôster: "Basta".