O Abismo Prateado não é um filme apenas sobre uma pessoa abandonada por um companheiro que esteve com ela a vida toda. Vai além, muito além. Diria que não é nem apenas um simples estudo de personagem, porque consegue passar a dor que Violeta está passando, ao longo de um curto período de tempo, magistralmente. E Karim Ainouz, como um maestro, conduz Alessandra Negrini a toda a sua glória.
[contém spoilers]
Há uma certa razão para que as coisas em Abismo sejam como são, como por exemplo, é necessário que um ator com o porte físico de Otto Jr. fosse o marido. Violeta se apoiava nele para viver, e, metafóricamente, amava a segurança que ter um homem, grande, forte, do lado, trazia. O filme faz questão de acentuar, o tempo todo, o vazio que toma a personagem quando se vê, repentinamente, sem ele. E então, quando é abandonada, a cada cena Violeta cresce como pessoa e como mulher. Da sua dor, se cria uma luz, ilusória ou não.
Tecnicamente falando, a edição de som do filme é de se aplaudir de pé. O cuidado de Karim Ainouz em reproduzir os sons que invadiam o mundo da protagonista é notório. A cena da obra explicita isso e nos momentos seguintes, podemos notar sempre barulhos em torno dos lugares que a protagonista passa. Dos mais calmos, aos mais altos, todos esses barulhos representam a perturbação no mundo dessa mulher. Que poderia ser qualquer uma, já que os sons são comuns do dia-a-dia de todos nós. E, então, nesse jogo com o interlocutor, o diretor brinca com a possibilidade de uma pergunta: e se Violeta estivesse mais próxima do que imaginamos?
O filme questiona, silenciosamente, a partir disso. "O que você faria no lugar?" diz esse roteiro. Sequência após sequência, Violeta age de uma forma bem peculiar: primeiro se exalta, em seguida vem a aceitação, extravasão, e depois a maturação da mágua. Na primeira, por exemplo, o hematoma surge como expressão externa de toda a dor da personagem (e suas tentativas desastrosas de seguir sem rumo). Engraçado perceber, também, que o filme só nos mostra a real mensagem de voz na segunda fase. E assim, podemos constatar o quão fraco é esse marido, quando diz:
"Não me pede pra voltar, senão eu volto... e a gente afunda junto"
. E como que para deixar claro sua insatisfação, ainda que não saibamos o porquê, insere no final, uma repetição incessante de
"Eu não te amo mais"
. A partir daí podemos entender a dúvida de Violeta, no que se martiriza, perguntando a si mesma onde errou. A terceira fase começa nesse ponto, onde Violeta extravasa numa dança - de libertação, nunca sensual - toda sua frustração. E é aqui, talvez, um dos grandes momentos de Alessandra Negrini no filme. A quase-montagens de cenas ao som de "Maniac" define o momento da personagem completamente.
Quando o desespero passa, depois de tanto chorar, surgem duras figuras libertadoras na forma de um pai, e uma filha. A menina surge primeiro, melancólica, porém fazendo o uso de sua melancolia para tirar o que há de melhor, numa tipica inocência infantil, uma espécie de "Jogo do Contente", abrilhanta a tela e ganha Violeta com seu carisma. A escolha da atriz mirim, que é boa, contribuiu para que a personagem funcionasse perfeitamente. A ela, falta uma mãe, a Violeta um marido. A mais velha então, numa genuína curiosidade, acaba criando um laço com os dois. Um laço pontual e inevitávelmente rápido, mas que logo trata de desmontá-la. Ela vê, nos dois, uma instabilidade muito maior do que a sua própria (que vinha de uma vida rotineira, comum e de classe média), e essa epifania a transforma de alguma maneira. Não sabemos como, pois o filme não nos conta, mas na derradeira cena do filme, isso torna-se óbvio.
A transformação de Violeta é mais um grande momento de Alessandra Negrini no filme, o momento da despedida, a faz refletir e a atriz consegue passar toda profusão de sentimento apenas num único olhar, vago, ao vê-los ir. Talvez Violeta nem estivesse querendo saber o que de tão ruim aconteceu com o seu amado, se ele apenas se cansou ou se havia outra mulher ou não... talvez buscasse a todo o tempo essa despedida, que lhe foi negada. E para demonstrar essa mudança de perspectiva, a câmera pela primeira vez desde que começou a seguir a personagem, a abandona, e parte em viagem junto com o Nassir e sua filha.
A cena final, no entanto, é interpretativa. O que acontece a seguir, o próximo passo de Violeta, é uma lacuna a ser preenchida pelo espectador. Fica claro, porém, que é ali o ponto de partida da canção de Chico Buarque em que o filme foi livremente inspirado. O ressentimento de Olhos nos Olhos - ato que foi negado a Violeta, ao receber a noticia de sua separação por uma superficial mensagem de voz - se inicia, portanto.
"Olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais".
. Estamos falando de uma música escrita para demonstrar o calor de um momento específico, que então, começa no filme.
O take final é poético e passível de discussão também, mas desde já demonstra uma tendencia na filmografia de Karim Ainouz (um diretor que irresistivelmente insiste em filmar a vida, como ela é, para nossa apreciação) em terminar seus filmes "na estrada", de alguma forma. No caminho da vida de Violeta, metafóricamente, ela teria que seguir em frente de certa maneira. E ao terminar, quando não temos mais Violeta, só nos resta a memória da performance arrebatadora de Alessandra Negrini. O filme é dela, e ao escupir essa personagem, a atriz está completamente entregue a uma jornada de confiança e autoconhecimento. Entregue, sem medo algum de errar, pois o que vale é o caminho, e não o fim. A distância emocional percorrida através dessas 24h na vida de Violeta, que poderia ser Amélia, Maria ou mesmo Alessandra, por meio da dor do abandono de alguém com que você viveu a vida toda. E o que sobra depois disso? A essência feminina, impulsiva e certeira.
"Quando talvez precisar de mim, cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim".