O que fez uma obra simples como Central do Brasil, de Walter Salles, ser uma das obras brasileiras mais aclamadas dos últimos tempos? A resposta reside na combinação de vários fatores que, unidos, proporcionam uma narrativa universalmente tocante, ancorada em um Brasil realista e cheio de contradições. Lançado em 1998, o filme não apenas alcançou sucesso internacional, conquistando prêmios como o Urso de Ouro no Festival de Berlim e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas também consolidou-se como um marco na história do cinema nacional ao retratar de maneira crua e emocional a jornada de seus personagens pelo interior do Brasil.
A história gira em torno de Dora (Fernanda Montenegro), uma mulher amargurada que trabalha escrevendo cartas para analfabetos na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Quando uma de suas clientes morre em um acidente, Dora relutantemente assume a responsabilidade de ajudar o filho da falecida, o jovem Josué (Vinícius de Oliveira), a encontrar seu pai no interior do Brasil. O que começa como uma relação de conveniência transforma-se em uma jornada emocional de redenção, amadurecimento e reconexão com a própria humanidade.
O sucesso de Central do Brasil se deve, em grande parte, ao poder de sua simplicidade. A trama, à primeira vista, é linear e sem grandes surpresas — uma viagem pelo interior do país em busca de um pai ausente. No entanto, é justamente essa simplicidade que dá espaço para a complexidade das emoções e das relações humanas que se desenvolvem ao longo do filme. O relacionamento entre Dora e Josué é o ponto central da narrativa, e sua evolução gradual e verossímil reflete a habilidade de Walter Salles em extrair profundidade de situações cotidianas. A personagem de Dora, em particular, passa por uma transformação que é ao mesmo tempo sutil e poderosa, à medida que ela se abre para o afeto e a responsabilidade, características que inicialmente negava.
A atuação de Fernanda Montenegro, amplamente aclamada pela crítica e reconhecida com uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, é outro dos principais pilares do filme. A complexidade de Dora é retratada de maneira magistral por Montenegro, que consegue transmitir as camadas emocionais de sua personagem — seu cinismo inicial, a culpa que carrega e, por fim, a vulnerabilidade que emerge à medida que se envolve com Josué. A performance de Montenegro evita o melodrama e é marcada por uma contenção e sutileza que tornam a jornada de Dora ainda mais impactante. Já Vinícius de Oliveira, que interpreta Josué, traz uma autenticidade comovente ao papel, representando com naturalidade a inocência e a dureza da vida de uma criança em meio à adversidade.
Outro elemento essencial para o sucesso do filme é o retrato do Brasil profundo, aquele que raramente é mostrado nas telas. Central do Brasil é uma ode ao interior do país, mostrando paisagens áridas e pobres, mas que carregam uma beleza singular e uma cultura rica. A fotografia de Walter Carvalho é notável por capturar a vastidão e a solidão dessas paisagens, usando luz e cores para refletir o estado emocional dos personagens. O cenário não é apenas um pano de fundo; é um personagem em si, representando as dificuldades e as desigualdades sociais enfrentadas pela população mais pobre do Brasil.
O filme também é eficaz em explorar o tema da desconexão social. Dora, que representa o Brasil urbano e moderno, e Josué, que simboliza o Brasil rural e marginalizado, são duas faces de uma mesma moeda. A desconexão entre os dois — tanto no início de sua relação quanto na forma como cada um vê o mundo — espelha as divisões que permeiam a sociedade brasileira. No entanto, à medida que Dora e Josué se aproximam, o filme sugere que há uma possibilidade de reconciliação, de entendimento e de cura, tanto no nível pessoal quanto no social.
A simplicidade do enredo é compensada pela profundidade dos temas que Central do Brasil aborda. O filme reflete sobre a perda, a solidão e a busca por identidade. Dora, que se desiludiu com a vida e perdeu sua fé na humanidade, e Josué, que perdeu sua mãe e busca um pai ausente, são ambos personagens em busca de algo maior — não apenas a figura paterna de Josué, mas também um sentido mais profundo de pertencimento e conexão. A jornada pelo Brasil interior é tanto física quanto simbólica, representando a viagem emocional que os personagens fazem em direção a uma nova compreensão de si mesmos e do outro.
Além disso, Central do Brasil se destaca por seu apelo universal. Embora profundamente enraizado na realidade brasileira, os temas que o filme aborda — a busca por redenção, a importância da empatia e o desejo de pertencer — são questões que transcendem fronteiras geográficas e culturais. Essa universalidade, combinada com a especificidade do retrato do Brasil, foi fundamental para o sucesso internacional do filme.
Por fim, é importante destacar que o filme se diferencia ao evitar soluções fáceis ou idealizadas para os problemas que apresenta. A relação entre Dora e Josué, embora se transforme em um vínculo afetivo, nunca é romantizada ou simplificada. O final, longe de ser plenamente feliz ou resolutivo, mantém uma ambiguidade que reflete a complexidade da vida real. Essa honestidade narrativa, aliada à delicadeza com que os temas são tratados, é uma das grandes forças de Central do Brasil.
Em conclusão, é uma obra que, por meio de sua simplicidade aparente, consegue tocar em questões profundas e universais, ao mesmo tempo em que oferece um retrato fiel e emocionante do Brasil. A combinação de uma narrativa poderosa, performances excepcionais e uma direção sensível faz com que o filme continue sendo aclamado tanto no Brasil quanto no exterior, consolidando-se como um dos marcos do cinema brasileiro moderno. É uma história de humanidade, empatia e reconciliação, que se destaca pela autenticidade com que lida com seus personagens e suas emoções, tornando-se, assim, um clássico atemporal.