O filme Anna Karenina é , acima de tudo, como se diz atualmente, conceitual. Sua proposta ousada e original de incorporar à direção de arte os elementos teatrais, e, mais precisamente, o próprio teatro como palco do desenrolar da história, é sua marca registrada. A Moscou do século XIX é apresentada como um grande teatro, por onde circulam a aristocracia e a burguesia. Estejam na platéia, no palco principal, nas coxias, nos camarins ou nos camarotes, todos estão apenas interpretando o seu papel. Se a metáfora parece bastante óbvia, ou seja, a elite vive representando, numa vida superficial e fútil de aparências e ostentação material, a proposta funciona muito bem, criando sequencias de grande impacto visual.
Tudo que o diretor Joe Wright havia feito até hoje não poderia supor esta virada em sua proposta de direção, tão clássico e fiel foi às adaptações de Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação. O romance de Tolstói já teve inúmeras versões para o cinema, sendo a do diretor americano Clarence Brown, estrelando Greta Garbo, a mais famosa de todas. No entanto, acredito que nenhuma adaptação foi tão radicalmente cinematográfica como esta. Este é o grande paradoxo do filme. Ao mergulhar num ambiente totalmente teatral, o filme consegue criar cenas de um encantamento visual puramente cinematográfico. Acho que desde A Mulher do Tenente Francês, um roteirista não arriscava tanto, criando uma verdadeira "adaptação" de um romance literário. É claro que o diretor também mergulhou de cabeça na ideia, e sua paixão, tal qual a Karenina que retrata, transparece em cada sequencia, indo além apenas da proposta visual. Montagem, música, edição de som, direção de atores, tudo é perfeitamente orquestrado.
Há cenas antológicas, como a da corrida de cavalos, e o "diálogo" usando cubos de letras entre Kitty e Levin. Não há como um cinéfilo não se render ao deleite visual que Anna Karenina proporciona. Parafraseando uma das falas de Anna, que diz ao seu amado se sentir como um mendigo faminto a quem finalmente deram o que comer, sou um cinéfilo que passa meses comendo sanduíche de mortadela servido pela indústria fast-food de Hollywood, que de repente foi convidado pelo maître Joe Wright a um banquete da mais sofisticada comida francesa, regado a vinho do Porto e champagne.
Anna Karenina é uma heroína trágica, como Madame Bovary. No entanto, ela não conta com a simpatia de Tolstói, que não parece retratá-la como uma autêntica e libertária feminista, lutando pelo seu direito de ser feliz no amor. Para Tolstói, Karenina é fútil e egoísta em sua paixão como qualquer outro burguês, e sofre as consequencias de seus atos de puro individualismo. Em contraponto à sua paixão, Tolstói retrata o amor bucólico, puro e idealista de Levin - um típico proletário rural. Quando a ação deixa Moscou para mostrar Levin, também abandona o universo teatral, com cenas externas realistas e convencionais, numa adaptação visual à mensagem de Tolstói que ali reside a vida real e moralmente correta que o homem deve buscar, ao invés da afetação burguesa e mundana da Moscou cosmopolita.
Anna Karenina marca a terceira parceria entre a atriz Keira Knightley e o diretor Joe Wright, que já fizeram juntos Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação. Ao que tudo indica, a parceria faz bem aos dois, que parecem render o máximo quando trabalham juntos. Mas o destaque nesse filme fica mesmo por conta dos coadjuvantes, todos excelentes, incluindo os praticamente desconhecidos Donhnall Gleeson (como Konstantin Levin) e Matthew MacFadyen (Stiva Oblosky).
A sequencia final parece vislumbrar um final feliz para a família que Anna Karenina deixou para trás. No entanto, embora a ação tenha abandonado Moscou para mostrá-los reunidos no campo, o habitat natural de Konstantin Levin, a representação burguesa ainda está presente. Anya escapa dos olhos do pai e do irmão. Parece que ela herdou o anseio de liberdade da mãe. Mesmo retratando tão bem o universo feminino, nem Tolstói poderia prever que as grandes transformações da sociedade ocidental do século XX viriam pela luta por direitos e igualdade capitaneada pelas mulheres, muito mais que as revoluções do proletariado por justiça social.